
Por João Arriscado Nunes
Sociólogo, Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Desde o início da atual pandemia da COVID-19, a maneira como pensamos o mundo foi abalada pela capacidade demonstrada por um vírus antes desconhecido de ameaçar com o colapso da ordem social e económica, com uma rapidez e eficácia que batem de longe os efeitos das crises económicas e financeiras que abalaram, nas duas últimas décadas, o capitalismo na sua versão neoliberal. O mundo e a sociedade passaram a ser redescritos a partir dos saberes, das categorias, das práticas, das métricas e dos vocabulários da medicina e da saúde pública e da centralidade e urgência da emergência sanitária. Podemos encontrar aqui uma versão revista e ampliada do longo processo, iniciado com a revolução microbiológica da segunda metade do século XIX, de transformação da medicina e da saúde pública através da sua convergência com as ciências da vida e da constituição do que hoje designamos de biomedicina. Persiste e amplia-se nesta emergência a transformação da sociedade num imenso laboratório onde a incerteza e a complexidade da exposição a um novo vírus se converte em busca de formas de governar e de reinventar a sociabilidade em tempos de pandemia e, presumivelmente, de novas emergências que possam ocorrer no futuro. As políticas e os sistemas públicos de saúde e de proteção social mostraram-se decisivos na resposta à propagação dos vírus. A afirmação do primado da defesa da saúde tem procurado ampliar a sua legitimidade através de notas promissórias de vacinas e novos fármacos, capazes de ajudar a trazer de volta, através da ciência, uma normalidade perdida. Como aprendemos com crises anteriores, só o futuro mostrará se, quando e como essas notas promissórias serão remidas, e se chegarão a todas os países, comunidades e pessoas afetados pelo vírus.
Entretanto, o imperativo de relançamento da economia antecipa o regresso a essa normalidade perdida – com cedências à urgência da defesa da saúde pública – sinalizando o retorno a um modelo de organização dos negócios, do trabalho e de consumo que continua ancorado na tensão entre a procura do lucro e o medo da fome que Karl Polanyi mostrou serem matriciais para o capitalismo. A história deste período de emergência, contudo, para além dos discursos sobre o carácter democrático do vírus e sobre o “estarmos todos no mesmo barco”, veio reafirmar de maneira brutal as linhas de fratura, as desigualdades e exclusões, as formas de violência, de privação, de opressão e de sofrimento que dividem o mundo e que são potenciadas pelas condições de exposição desigual ao novo vírus.
Para os 460 milhões de pessoas que vivem vidas precárias na Índia, entaladas entre o vírus e o confinamento sem apoio social, para os indígenas e povos originários nos vários continentes, para os migrantes indocumentados e refugiados, para as populações periféricas das grandes metrópoles urbanas, para as pessoas sem-abrigo e para as que são abandonadas pela sociedade e são remetidas à invisibilidade, a pandemia da COVID-19 vem potenciar o estado de emergência que, para retomar a expressão de Walter Benjamin, se tornou permanente para os milhões que vivem vidas precárias no mundo. No processo, que se anuncia difícil e marcado por grande incerteza e imprevisibilidade, de saída da atual convergência das crises sanitária, social, ecológica, económica, política e civilizacional será certamente forte a pressão para restaurar, em versão 2.0, essa normalidade que condena uma parte significativa da humanidade a viver em permanente estado de exceção e de negação dos seus direitos, da sua dignidade e da sua plena humanidade. Essa é a mesma normalidade que trata a terra, o ar, a água, a vida na sua imensa riqueza e o trabalho humano como fontes de acumulação de capital e de poder.
Um outro futuro poderá, contudo, estar a forjar-se na procura de respostas solidárias, ecológicas e respeitadoras da dignidade humana, de uma ética do cuidado e da solidariedade, alimentadas pelas experiências que emergiram durante a crise e pelas histórias e experiências de quem sofre e resiste, afirmando o cuidado e a justiça social como condições matriciais de uma nova sociabilidade e de uma nova relação das sociedades humanas com a biosfera e a geosfera de que sempre foram parte.