Imagens e linguagens da pandemia

Por M. Correia Fernandes

Somos linguagem. A linguagem faz-nos, e nós fazemos a linguagem. A linguagem identifica-nos e revela-nos. Nestes dias de continuidade pandémica, sem que tenha sido muito falado, celebrou-se o Dia da Língua Portuguesa (em 5 de maio).

As múltiplas linguagens do tempo de pandemia revelaram novidades: primeiro porque se tornaram muitas, mais que o usual; e segundo porque falaram os que habitualmente estão mediaticamente reduzidos ao silêncio, e que agora nos têm aparecido com caras distorcidas e palavras deslocadas do movimento dos lábios: a tecnologia imperante não é coisa perfeita. Para além da distorção das caras, também surge a distorção das palavras.

Vamos a algumas novas expressões.

Coronavírus e Covid-19 – Termo edificado pelo modelo inglês (em português seria vírus corona) que toda a gente agora usa, com a indicação de que é “o novo”. Nunca nos falam do antigo, nem do corona-20, ano em que já estamos. É a atração da novidade, a que se associa o processo de nomenclatura que consiste em associar partes de palavras para formar conceitos novos. Lembra-se que COVID-19 é um anagrama do inglês “Corona Virus Disease”, identificado em 2019.

O afastamento inteligente – Ora aqui está um conceito estranho. Será que há afastamento estúpido? O afastamento será portador de inteligência? Mas há mais coisas inteligentes: a máscara inteligente, que é diferente da máscara cirúrgica, a máscara renovável, as luvas descartáveis, a viseira frontal (que alguns até fazem de garrafões de água) e as máscaras conjugadas, duas em uma. Temos o confinamento, esperamos o desconfinamento e já nos ameaçam com o reconfinamento.

Por outro lado, o “cerco sanitário”, uma especialidade de Ovar, depois exportado para a Madeira, é também conceito novo, bem como o teletrabalho, o líquido desinfetante, e os infetados, que todos podemos ser.

Surgem depois o drama dos sem abrigo que se torna mais premente nestes dias, o drama dos cafés e restaurantes fechados. Por fim surgem pessoas sensatas a lembrar que já se devia ter efetuado a sua abertura, claro que com regras. E o grande drama dos sub-empregados e dos desempregados forçados, um drama humano e social.

Por outro lado, neste contexto de desgraça coletiva (desalento, desemprego, depressão, irascibilidade, dramas familiares, alguns confrontos com a polícia) surgem sinais positivos (dentro da sua origem de negatividade) para os quais se tem chamado pouco a atenção:

1) diminuiu a poluição atmosférica nas cidades para valores insuspeitados, e segundo as últimas informações, também nas águas do Douro; 2) diminuiu o número de acidentes nas estradas (apesar de haver condutores a circular a altas velocidade nas ruas citadinas e se ter registado uma morte recente); 3) tem diminuído também, dizem, o buraco do ozono, que agora deixou de ser de referência constante; 4) diminuíram as queixas na polícia, mesmo que se continue a falar, no contexto do confinamento, de situações propícias à violência doméstica; 5) diminuiu o número de presos, por causa da “medida melindrosa” da libertação de alguns; 6) desviaram-se os interesses comerciais: onde se fabricavam roupas passou a fabricar-se máscaras e onde se fabricavam aparelhos passou a fabricar-se ventiladores e equipamentos de proteção.

Esqueceu-se o drama dos refugiados, mas regressa o big brother, o on line, a power box, os reality show, facebook, o futebol à porta fechada e a universalidade das máscaras.

Além disso constroem-se quadros catastróficos: a Índia “poderá vir a ter” centenas de milhões de infetados (curiosamente é um dos países que tem menos casos em relação com a população de 1,3 mil milhões); a economia pode colapsar, prolifera o subemprego e o desemprego; uns podem reunir-se e outros não; continua o confinamento dos idosos (já não basta a idade, cultiva-se também a solidão e a ausência da família); qualquer abertura a caminhos de normalidade vem acompanhada de uma caterva de regras e normas nascidas nos gabinetes ministeriais que são de estarrecer, como a das crianças terem que estar separadas umas das outras; nascem como cogumelos as percentagens para tudo.

Estamos num mundo contraditório. Tudo o que excepcional (ou mesmo excecional) é contraditório. Valha-nos o senso comum. Por onde andará?

Um dos caminhos que importa percorrer é o da difusão de mensagens positivas de esperança que levam a comportamentos positivos. Outro é o do bom exemplo: não deixa de ser caricato que os deputados e governantes apareçam de máscara (para quê?) e depois a tirem os (poucos) que usam da palavra, que o mesmo é dizer da causa que justificaria o uso da máscara: evitar os fluidos bucais. Uma terceira referência: que se abra o comércio, com os necessários cuidados, mas sem exceções despropositadas, estimulando o movimento económico e a convivência das pessoas.

Há que criar o espírito de uma abertura racional e inteligente, que parece tardar. O excesso de regras não constitui forma conveniente de uma abertura equilibrada.