
Por M. Correia Fernandes
Faleceu no dia 30 de abril de 2020 o Bispo Emérito de Nampula (Moçambique), D. Manuel da Silva Vieira Pinto. Era natural da freguesia de Aboim, no concelho de Amarante, onde nasceu a 9 de dezembro de 1923. Ia a caminho dos 97 anos de vida. As suas exéquias foram celebradas com a simplicidade exigida pela regra do confinamento, na igreja de Cedofeita, no Porto, presididas pelo Bispo D. Manuel Linda, com a presença dos Bispos auxiliares e do Diretor da Casa Sacerdotal.
Frequentou os seminários do Porto, e terminado o curso de Teologia foi ordenado presbítero na catedral do Porto em 7 de agosto de 1949, aos 25 anos. Após trabalho pastoral na Diocese (foi coadjutor de Campanhã, assistente e dinamizador da Juventude Operária Católica (JOC), onde exerceu uma missão de aconselhamento e promoção humana para os jovens do mundo operário da cidade, foi nomeado diretor espiritual do seminário de Vilar, sucedendo a D. Florentino de Andrade e Silva. Foi neste tempo que foi preparando a sua posterior ação no nascente Movimento por um Mundo Melhor.
Tendo feito formação em Roma com o conhecido Padre Riccardo Lombardi (1908-1979), fundador desse Movimento, na força e no entusiasmo desse encontro e dessa formação, ao regressar a Portugal promoveu cursos de formação e conferências por ele conduzidas, com as quais encheu o pavilhão do Palácio de Cristal e o Pavilhão dos Desportos em Lisboa.
Nomeado pelo Papa Paulo VI Bispo de Nampula, em Moçambique, recebeu a ordenação episcopal na igreja da Trindade, no Porto, em 29 de junho de 1967, tendo partido para Nampula em 24 de setembro desse ano. Foi nomeado Arcebispo em 6 de junho de 1984. Resignou no ano 2000, aos 76 anos de idade. No regresso a Portugal, acolheu-se à sua terra natal, e depois, por enfermidade, à Casa Sacerdotal no Porto, onde viveu os últimos anos da sua vida. No 50.º aniversário da sua ordenação episcopal, o Bispo D. António Francisco dos Santos dedicou-lhe sentidas palavras e um gesto de homenagem da Diocese.
Para edificarmos o seu retrato, nada mais eloquente do que a imagem muito divulgada de D. Manuel segurando nos braços uma criança que a mãe lhe apresenta: sinal da presença e acolhimento do Bispo ao povo que lhe foi confiado. Porém, a sua ação evangelizadora e profética começa muito antes.
Em 1963, o Padre Manuel, como era conhecido no meio portuense, promovia o lançamento de uma coleção, publicada pela Livraria Figueirinhas, no Porto, com o nome “Por um Mundo Melhor”. O primeiro título dessa coleção, com data de 1963, chamava-se “O Homem e a História”, e era da autoria de Riccardo Lombardi, o fundador do Movimento, proposto por Pio XII em 1952, e cujo lema era “Transformar o mundo de selvático em humano, de humano em divino, isto é, segundo o coração de Deus”. O prefácio desse livro, assinado pelo P. Manuel Vieira Pinto, procurava definir as linhas motivadoras do Movimento (“renovação total da vida cristã, na linha da defesa dos valores morais, na realização da justiça social, na reconstrução da ordem cristã”). Escreve ainda: “A Igreja não foi nunca alheia à estruturação da cidade dos homens e sempre ensinou que as estruturas políticas, económicas, sociais são meios e não fins, que os homens de qualquer raça, condição ou cultura, têm direitos e deveres fundamentais e inalienáveis”.
Estava lançado o ideário que orientaria a sua intervenção eclesial na sociedade portuguesa, nas célebres conferências que pronunciou, ideário que depois serviu de linha de rumo para a sua ação como Bispo, em outro continente distante.
Valerá a pena lembrar que esse primeiro volume (os seguintes) da coleção tinha a direção de P. Manuel Vieira Pinto, sendo colaboradores: P. Dr. A. A. de Sousa Marques (que fez a tradução) e Frei Bernardo Domingues, com o “Nihil obstat” de P. Ângelo Alves e o “Imprimatur” de Florentino, Administrador Apostólico. Destes, permanece connosco o “Dr. Sousa Marques”, que foi Reitor do Seminário de Vilar. A este volume se seguiram outros: “Propriedade e socialização” (1964), “O Evangelho e o Mundo Novo” (1965), “Deus é pobre” (1967), “Uma Religião para o nosso tempo” (1968). Entretanto foi D. Manuel nomeado Bispo de Nampula.
Esta é uma nova e trasbordante etapa da sua ação pastoral. Torna-se, no dizer de um seu colaborador naquela Diocese, o Padre José Luzia, no livro a que deu o título de “O visionário de Nampula”, que constitui uma história e memória da sua ação como Bispo da diocese, recordando a presença e a forma de exercer a sua missão de Bispo, um profeta do anúncio evangélico a novos povos da terra.
Lembremos que Nampula é uma amplíssima diocese da região Norte de Moçambique, na província do mesmo nome, sendo a cidade distante da capital cerca de 1500 km, com características de uma população, a etnia macua, de cultura muito diferente da do sul. Com uma área de 80 mil km2, tem hoje uma população de 750 mil habitantes. “Tratou de pôr a diocese ao ritmo do Concílio”, afirma José Luzia, recordando assim o Movimento por um mundo melhor. “Ao descer da escada do avião, olhou à distância o povo, tomou nos braços uma criança negra que ergue perante a admiração das autoridades”.
Levantou-se contra os abusos do colonialismo, e mais tarde contra os abusos praticados na guerra civil entre a Frelimo e a Renamo, procurando estabelecer o diálogo entre os dois movimentos, condenou os chamados “campos de reeducação”, denunciando os atentados à dignidade humana.
A sua homilia do Dia da Paz de 1974 (recorda-nos a de D. António Ferreira Gomes na mesma data) levou-o a ser detido pela Polícia política (em 20 de abril de 1974) e enviado para Portugal, sob prisão, tendo sido apenas detido na embaixada, por intervenção do então Ministro dom Ultramar. Pôde regressar a Nampula em 1975, depois de ter sido convidado para o Conselho de Estado em Portugal, convite que recusou. Foi depois condecorado pelo Presidente da República Mário Soares. \\
No seu regresso, lutou para que o poder político emergente respeitasse a prática religiosa do povo. O P. José Luzia lembra no seu livro que ele dizia aos governantes: vocês mantêm as igrejas abertas, como é que depois perseguem os crentes?
Dialogava com o Presidente Samora Machel, a quem dizia que Deus não precisa que o defendam, o Homem e sua dignidade precisam, é essa tarefa que eu lembro e proponho. Anselmo Borges preparou e publicou um conjunto de textos seus, com o título “Cristianismo: Política e Mística” (Antologia, Introdução e Notas de Anselmo Borges), publicado pelas Edições ASA.
Uma entrevista radiofónica, realizada na sua casa de Aboim, Amarante, difundida pela TSF em 2002, proposta pelo jornalista Manuel Vilas Boas constitui um interessantíssimo testemunho da sua vida como sacerdote, como Bispo e como homem de Igreja.
Vale a pena recordar algumas das suas afirmações: contestava as ações do poder e da oposição naquilo que considerava manifestação de injustiça e de ofensa à dignidade da pessoa humana. O colonialismo é um episódio: o essencial é a ofensa à dignidade da pessoa humana. Recorda o apedrejamento da catedral e os cartazes de “traidor à pátria”. Aos novos dirigentes falei sempre com muita liberdade, denunciando os abusos e ofensas. Nunca o Vaticano me disse faz assim, ou de outra maneira.
Sobre a Igreja portuguesa propunha: uma Igreja mais profética, simples, pobre e rica em profecia e dinamismo evangélico. Lembra-se que criou uma Congregação na diocese de Nampula, e manifesta a vontade de ali poder regressar: “o meu futuro é Moçambique”.
D. Manuel Vieira Pinto foi, enquanto teve saúde e força, ele próprio uma voz profética. Uma mensagem importante: o apelo ao diálogo entre cristãos e muçulmanos, de grande implantação o espaço da diocese e da província: sempre procurei o diálogo e a colaboração, tínhamos relações de muita cordialidade.
É significativo que um alto dirigente e ideólogo do Partido Socialista dele escreva: “O antigo Bispo de Nampula era um homem superior, permanentemente animado por um propósito maior: a defesa do Homem” (Francisco Assis, Público, 1 de maio 2020).
Este é de facto um retrato da sua vida: desde a família, em que diz ter recebido todo o sentido do ser humano e cristão, desde a sua ação como acompanhante do movimento operário, da sua criação em Portugal do Movimento por um Mundo Melhor, desde a sua ação como “visionário de Nampula”, até ao seu apagamento pela idade e pela doença que o prostrou nos longos últimos anos da sua vida, Manuel Vieira Pinto, Bispo da Igreja, foi verdadeiramente um Homem superior, que lutou pela dignidade da pessoa humana, pela edificação de um mundo “segundo o coração de Deus”.
Aqui lhe fica a nossa homenagem de admiração, manifestada também pelo Bispo do Porto, na celebração das suas exéquias na igreja de Cedofeita.