
Sucediam-se por aqueles dias de fim de Quaresma, as manifestações por toda a cidade de Nampula, onde a efígie do bispo Vieira Pinto era o tambor em que todos se fartavam de bater. Tinha chegado aos ouvidos de muitos que o prelado defendia ideias pouco amistosas sobre a independência daquela província ultramarina do Índico. Corriam dizeres de documentos em que isso era mesmo explícito: no “Repensar a Guerra” e, sobretudo, no “Imperativo de Consciência”, de lavra primeira dos missionários combonianos.
A opinião pública saturava-se do mau viver dos colonos na cidade, acirrados por alguns, mais “cafrealizados”, no mato. Eram muitas as lojas dispersas pelo território da província de Nampula. O ambiente envenenava-se de conversas azedas sobre as intenções do bispo: “Entregar, isto, sem mais?… Que já chega de colonialismo?”, interrogavam-se nervosos, católicos, maometanos e não crentes.
Cheguei por esses dias à cidade capital da província. Vinha de António Enes, a 180 km, uma pequena cidade, banhada por uma praia larga e longa. O quotidiano fazia-se entre acácias rubras e o colégio, onde os filhos dos colonos eram um mar de gente. No edifício novo, alguns simbólicos autóctones para manter a diferença. Uma cidade de doze mil habitantes: dois mil, em alvenaria, dez mil, no bairro do Ingúri, sob um longo tecto de barracas. Um cenário repetido por outras localidades.
A voz dos altifalantes
Na cidade de Nampula, com alguns milhares de habitantes mais que António Enes, mas quase todos sentados no chão. Havia cores nas casas e algum alcatrão nas ruas traçadas a esquadro. O bispo vivia num canto da cidade, campo aberto de missão. Porta aberta a quem desejasse aproximar-se. Eu vinha de longe para tratar da documentação oficial para uma ordenação. Chegava ao fim, um estágio de dois anos, entre aulas e meças à imaginação. Do teatro a cantorias afinadas.
De vez em quando, os altifalantes, lembravam, no coração da cidade, que a manifestação estava marcada para a tarde, a fim de sacudir da catedral, o bispo que ali viria fazer orações, em tarde de quarta-feira santa. Uma celebração penitencial, para os mais entendidos. Eram mais intensos os cheiros das ruas com muitas fotografias daquelas em que se lia já a sentença final: “Bispo de Nampula Vieira Pinto, famigerado traidor à pátria. Indesejável em território português. Viva Portugal uno e indivisível.”
Um infiltrado
Não eram precisos mais argumentos. Todas as razões estavam ali de pedras e paus nas mãos, de dezenas largas de exaltados patriotas.
Documentos largados na secretaria da diocese, era preciso chegar às quatro da tarde ao terreiro da catedral. De boleia, sentei-me no Subaru ofegante do bispo. Mandou a prudência que o bispo não descesse também para a catedral. Regressou de imediato a casa. Eu, pé, ante pé, por entre a multidão, em frente à catedral, perguntei se aquele era o lugar mais seguro, mesmo em frente aos polícias, que se encarregavam de proteger a catedral. Uma pedra ecoou no corpo do templo branco com a porta semicerrada. A resposta da polícia não tinha chegado quando, num salto nervoso, entrei de rompante, na catedral. Fora, as vozes aqueciam slogans de morte ao bispo traidor. Numa das sacristias, soltavam-se vozes em altercação.
“Isto é território do Vaticano!”
O responsável da Pide, em Nampula, um antigo padre salesiano (!), tentava convencer o pároco, um minhoto de rija têmpera, já desaparecido, a abandonar aquele lugar já que dizia não dispor de forças policiais suficientes para cuidar da sua integridade física. “Não saio!”, gritava-lhe o sacerdote, exaltadíssimo. E acrescentava: “Como deve saber, a catedral é território do Vaticano!”. “Aqui quem manda é a força!”, contra-argumentava o Pide, ex-padre. “E nós não temos forças que cheguem!”
Não aguentei mais aquele braço de ferro e atirei-me pela porta lateral. As pedras avançavam como dardos sobre a catedral. Fora, por detrás do templo, pretendia escapar-me para a residência da paróquia, onde tinha deixado os meus pertences. Era preciso atravessar quintais de muros altos. Três jovens da JOC (Juventude Operária Católica) reconheceram-me e decidiram aproximar-se de mim. Ainda pensei arregaçar as mangas para uma defesa imediata, corpo a corpo. Quando os manifestantes se aperceberam de que o bispo já não vinha, descarregaram pedras e paus nos muros da catedral, até saciarem a raiva que os tinha acometido. Vingaram-se, alguns minutos depois, na residência paroquial, onde partiram vidros e deixaram violências de animais feridos.
Jaculatórias incendiárias
Já não me apanharam estes bandoleiros porque, de imediato, por mãos de amigo, enrolado num cobertor, escondido no fundo da caixa de uma pick up, rumámos pela saída de Nacala, em direção a terras do Parapato, antigo nome de António Enes. Nunca tantas jaculatórias incendiárias me saíram da boca. Era já madrugada quando, inquietos, por entre raios e coriscos, aportámos à terra que, ao tempo, ainda era prometida…
Notícias do dia seguinte davam notas de uma Nampula, a ferro e fogo, com um bispo, como capacho nas mãos da polícia política. Um pequeno avião levou o “condenado” para o aeroporto da Beira, seguindo depois para a capital, Lourenço Marques, para o despacho final.
Um núncio e um cardeal
Em Lisboa, no aeroporto da Portela, pela manhãzinha, o núncio apostólico era chamado de improviso para receber a presa da Pide. Não fora a coragem do então cardeal de Lisboa, D. António Ribeiro, e o despacho seguiria em direção a Roma, oferta “envenenada” a Paulo VI, papa que recebera, anos antes, os líderes dos Movimentos de Libertação… No calendário cristão, 14 de abril de 1974, era domingo de Páscoa, depois dos desaires daquela semana torturante. Algum delay da Ressurreição… faltava arrumar as pedras grandes que tapavam a entrada do sepulcro…. Estavam ali, subtis, as interpelações de toda a revolução moçambicana. Alguém jamais esqueceria aquele gesto profético do mensageiro que vinha “por um mundo melhor”: uma criança negra, arrancada à mãe, é projectada contra o Sol, à chegada, ao pequeno aeroporto de Nampula, a esmagar esperanças e a criar rancores, que jamais se viriam a apagar.
(Manuel Vilas Boas, TSF)