
Por Jorge Teixeira da Cunha
Tem sido bastante pobre a discussão teológica da presente pandemia. O que tem sido mais visível é pensar a questão em curto-circuito, do género: os crentes têm de confiar em Deus, pois não serão contaminados, mesmo que se exponham a riscos. Este caminho está completamente equivocado, por diversas razões.
Em primeiro lugar, revela uma completa incompreensão do poder divino. E facto, Deus pode livrar-nos e livra-nos mesmo da doença e do mal, mas o caminho para entender como o faz é um caminho longo. Para entrarmos na força divina que nos livra do mal e da doença, temos de não esquecer que o mundo é criado em Cristo, o Filho de Deus. Ora o poder de Jesus é filial, um poder que não o livrou da morte às mãos de judeus e de romanos. Aprendemos isso na discrição de Jesus, acentuada nos Evangelhos, a respeito dos seus milagres. Aprendemos isso no seu silêncio no interrogatório de Pilatos, cujas respostas o podiam livrar da execução. Jesus impõe silêncio aos outros e impõe-se silêncio a si mesmo, revelando assim o mistério do poder filial. Jesus tudo pode, pelo poder que é recebido na sua aceitação de Deus. Esse poder é outro nome da sua identidade como Filho.
Em segundo lugar, podemos concluir que esse é o modo como todos os seres humanos, recebem, pela fé, a sua força de viver e sua identidade como seres livres. Todas as narrativas de milagres de cura nos evangelhos supõem este intercâmbio de fé entre Cristo que cura e quem é curado. A vida que Jesus reparte por todos é condicionada por esta evolução da subjectividade até ao grau da aceitação de si, que, por esse caminho, sustenta cada ser humano. O acto de fé implica sempre um drama e uma luta, pois o caminho mais evidente e mais imediato é a ilusão de subsistir por si. Não há nenhum milagre no mundo que não seja mediado por esta luta que é dar lugar a Deus numa vida que é filial na sua origem. Mais do que isso: não há nenhum ser humano verdadeiramente humano que não tenha passado por esta prova de se receber dolorosamente como quem é. Nada se pode esperar de Deus que não venha por este caminho filial. Fica evidente o equívoco de quem pensa que Deus age nos seres humanos independentemente deste jogo de confiança mútua, o qual é muito custoso, tanto para Deus como para o crente.
Em terceiro lugar, aventuramos uma reflexão sobre a doença que nos afecta. Parece que a regra de todos os viventes é este drama de sobreviverem por uma contínua resistência aos agressores. A perseverança na vida é sempre um triunfo sobre uma ameaça. No caso presente, temos uma ameaça nova, um vírus que, seja lá qual for a sua origem, é um novo episódio de uma história que vem do princípio do mundo. Para lhe resistir, temos de começar por este esforço subjectivo de confiança e de fé. A vida dos ser humano é física, química e social, mas antes disso é espiritual. Este último ponto é completamente esquecido pela estratégia de combate que temos posto no terreno, abnegadamente, diga-se. A biologia e a medicina de hoje pensam a saúde de forma quantitativa e pública. E esquecem que a perseverança na vida é subjectiva, pessoalíssima. A química e a política de saúde são coadjuvantes do esforço da cada ser humano.
Quando chorarmos os mortos, talvez possamos aprender algumas coisas sobre o que nos aconteceu e, certamente, acontecerá de novo a quem por cá andar no futuro.