Covid-19: personalidades que faleceram com coronavírus

Foto: Nuno Ferreira Santos/Público

Recordamos aqui três personalidades relevantes do universo cultural que faleceram nestas últimas semanas com o coronavírus.

Por M. Correia Fernandes

Personalidades afirmadas e inspiradoras

Fomos, nos últimos tempos, confrontados com a notícia da morte (entre tantas outras que nos ferem a consciência, mesmo quando de gente esquecida, mas humana como a outra) de três personalidades relevantes no universo cultural: Maria de Sousa (1939-2020) , investigadora e professora; Luís Sepúlveda (1949-2020), de origem chilena, escritor e interventor social; Ruben Fonseca (1925-2020), escritor e ensaísta brasileiro. A morte destas três personalidades apareceu associada à pandemia do coronavírus.

1 Maria de Sousa (1939-2020)

1 Comecemos por recordar Maria de Sousa. Investigadora e professora ligada a Universidade do Porto, era personalidade e figura reconhecida internacionalmente pelos seus estudos na área das ciências médicas.

Dela tenho a honra de lembrar a sua participação numas Jornadas Pedagógicas promovidas pelo Movimento de Educadores Católicos, em março de 2004. Recordo agora a visita que lhe fiz nesse ano, solicitando a sua colaboração naquelas Jornadas Nacionais que o Movimento nessa época realizava anualmente, inicialmente em Fátima, mas que nesse ano tiveram lugar no Porto, na Casa Diocesana de Vilar, e que contaram com a participação de personalidades tão excelentes e relevantes no movimento escolar e pedagógico desse tempo, como José Augusto Seabra (1937-2004), (que falou da centralidade da língua, história e cultura nos currículos escolares), Anselmo Borges (que falou da importância dos valores éticos na educação da juventude), Alberto Castro (que traçou o perfil da sociedade portuguesa do tempo; Joaquim Azevedo, que apresentou o sentido de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo, então em estudo; João Manuel André, que falou da importância da formação artística em meio escolar; Manuel Silva Costa falou da inter-relação Família Escola, António Rego, que estabeleceu relação entre a escola e a comunicação social, não faltando uma leitura socio-religiosa da sociedade portuguesa, por Américo Mendes. Permita-se-me salientar a visão abrangente apresentada nestas Jornadas: a visão estrutural e política, a visão económica e social, a visão humanística, de pensamento e cultura e a visão científica, esta a cargo de Maria de Sousa, que versou o tema “A investigação científica como parte integrante da educação dos jovens”, propondo orientações para a escola estimular os jovens pela importância e o gosto da investigação científica.

Aqui fica pois esta referência de gratidão a esta figura de mulher de ciência, simples e próxima, como todas as grandes figuras da sociedade. Registo a opinião de Pedro Rodrigues, atual Vice-Reitor da Universidade do Porto e que foi seu aluno: “A Professora Maria de Sousa era muito assertiva, muito inquisitiva e tinha ideias fortes. Pautava-se muito pelo rigor, pela excelência e pela qualidade. Puxava muito por nós e não se coibia de fazer as suas observações, as suas críticas e chamadas de atenção” (in Observador). Muitos lembram dela tanto o seu rigor na investigação como a sua “humanidade impressionante”.

Maria de Sousa era imunologista, mas o seu trabalho e dedicação foi superado pela conjugação de dois males: fazia hemodiálise e não pôde superar a presença da corona vírus. Mas ficou ela, o essencial. O exemplo, a personalidade, a dedicação ao bem comum.

Uma das sua últimas mensagens foi um poema. Escrito em 3 de abril deste ano, intitulado “Carta de amor”, numa pandemia vírica. Retenhamos estas palavras de inquietação: “As crianças?/ Mas as crianças também estão a morrer/ Nas minhas circunstâncias/ Poderei morrer/ Perguntando-me se vos irei ver de novo./ Mas antes de morrer/ Quero que saibam

Quanto gostava de vocês/ Quanto me preocupava convosco/ Quanto me recordava dos momentos partilhados e estimados/ Momentos então/ Eternidade agora (…).

Porque poderei morrer e vós tereis de viver / Na vossa sobrevivência, a esperança da minha duração”. É isso que esperamos: a esperança da sua duração, na eternidade agora.

2 Rubem Fonseca (1925-2020)

Menos conhecido entre nós, era figura admirada e reconhecida no Brasil. Natural de Minas Gerais, de formação jurídica, numa vida de quase noventa e cinco anos, a sua obra espalha-se pela narrativa (conto e romance), mas também pela reflexão social e política. Os títulos das obras vagueiam entre o descritivo tradicional (como “A Grande Arte” -1983 – ou “Feliz Ano Novo”-1975), e o escabroso ou insólito, como Diário de um Fescenino (2003) ou “E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto” (1997). O seu romance O seminarista foi escolhido pelos leitores do Jornal do Brasil como o melhor livro publicado no país em 2009. Entre os prémios de reconhecimento do seu valor literário sobressai o Prémio Camões, em reconhecimento pelo valor global da sua obra (2003) e o brasileiro Prémio Machado de Assis, também pelo conjunto da sua obra (2015). Colaborou também no cinema e na crítica de arte. Dele escreve o crítico Fernando Cardoso: “Rubem Fonseca é pródigo em deixar as coisas para o leitor completar. Ao escrever, o autor deve supor um interlocutor inteligente, culto, atento”. É essa a característica comum dos grandes escritores, como Agustina ou Vergílio Ferreira: o mais importante é o que o leitor é capaz de acolher.

3 Luís Sepúlveda (1949-2020)

Eis um autor que vindo de um mundo distante, se tornou digno de atenção e referência na Europa, e particularmente no mundo hispano-português. A sua presença tornou-se relevante no encontro de escritores designado “Correntes de Escrita”, que se realiza na Póvoa de Varzim. Após a edição deste ano (de 18 a 23 de fevereiro) em que participou, deslocou-se para a cidade astruriana de Gijón, onde residia com a mulher, a poeta também chilena Carmen Yáñez. Ali se diagnisticou a infeção com o coronavírus, com que acabaria por falecer. Foi ativista político, apoiante do Presidente Salvador Allende, dacto que o levou a ter de emigrar, tendo estado na Rússia, na Alemanha, na França e finalemente em Espanha. A sua criação de escrita abarca também géneros diversos, entre os quais a crónica, a narrativa, a crítica social e literária, argumentos e realização de filmes. Entre a sua obra traduzida em português encontram-se “A sombra do que fomos” (2009) e “Crónicas do Sul” (2011). Em Portugal recebeu, em 2016 o Prémio Eduardo Lourenço, galardão atribuído pela intervenção e ação relevante na valorização da cooperação e da cultura ibérica. Títulos simbólicos da sua obra são “História de um gato e de um rato que se tornaram amigos” ou “História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar”, ou “História de um caracol que descobriu a importância da lentidão”, obras editadas pela Porto Editora.  Do universo da obra escreve Lídia Jorge: “Os seus livros são joias preciosas, marcados pela terra sul-americana que lhe deu origem, pela língua espanhola que lhe deu a plasticidade vigorosa da narrativa, e sobretudo pelo cunho de criador incomum, que lhe permite ser traduzido e amado em todas as línguas” (CNC).