
Por M. Correia Fernandes
Vamos então na esteira do editorial da semana anterior, no horizonte dos sentidos e significados da celebração pascal: o do alcance e valor redentor do sofrimento, não apenas o sofrimento físico, nem sequer o pessoal, mas o sofrimento social e o sofrimento cósmico, na esteira do que escreve S. Paulo, afirmando que “toda a criação geme e sofre as dores do parto até ao presente dia” (Rom 8,18). O mundo é neste tempo agarrado pelo sentido de um sofrimento cósmico, que nos traz “perfilados de medo”, como afirmava José Mário Branco: oxalá este medo nos salve da loucura, como diz.
O verso de Sophia de Mello Breyner que serve de título a esta reflexão surgiu na sequência de abril 1974, no livro “O nome das coisas”, inspirado nas vivências conflituosas e contrastantes daquele ano. Vivemos hoje também um tempo de desencontro e poeira, imposto por circunstâncias que nos fabricam o medo. Esperamos, ainda na voz da poeta, o “dia inicial, inteiro e limpo”, em que possamos limpar as nossas mãos e limpar o coração da sociedade, e possamos emergir “da noite e do silêncio, e livres habitarmos a substância do tempo” (Ibidem).
Em dia de Páscoa, após a celebração litúrgica, o Bispo do Porto deu a bênção à diocese e ao país, no espaço da ponte que une as cidades de Gaia e Porto. A simbologia de estabelecer pontes, pontes físicas, sociais e sobretudo espirituais, está radicada no significado da busca da proteção divina que os crentes esperam para as suas vidas. Gestos semelhantes se repetiram em outras cidade do país e do mundo, em diferentes locais simbólicos como as torres das catedrais ou monumentos como o Cristo do Corcovado. No final a bênção foi orientada, à porta da catedral, para os membros e agentes da comunicação social, os únicos (para além das autoridades policiais) que puderam acompanhar e registar o acontecimento. Esta bênção foi realizada no contexto da alegria pascal, em contraste com o sofrimento e a ausência das pessoas, ao som solene e histórico dos sinos da igreja de S. Lourenço e da catedral. Ela foi expressão do aleluia pascal, a mais bela de todas as palavras, mesmo em português, no dizer do Cardeal José Tolentino, que a completar com a afirmação de que a Páscoa é “o dia para sentir que a vida verdadeiramente recomeça”.
Permitam-me ainda recorrer ao pensamento de um dos maiores pensadores portugueses, o Padra António Vieira, numa palavra que bem se pode aplicar aos acontecimentos de hoje: “Muitas vezes pedimos o mal, cuidando que é bem, e não pedimos o bem, cuidando que é mal; e só Deus, que sabe o que nos está bem ou mal nos pode dar o que nos convém. Os segredos da Providência divina não se podem alcançar por ciências humanas”.
Estas palavras do século XVII bem podem aplicar-se a muitos entendimentos de hoje, tão complexos e tão desencontrados.
Vivemos uma encruzilhada do tempo e uma profunda e rápida transformação das relações económicas e sociais. Talvez possamos preservar as realidades e os universos culturais, mas temos que fazer muito esforço de pensamento para os não desvirtuar.
E procuremos redescobrir o sentido de outras palavras de Sophia: “Aquilo que nem sequer ousáramos sonhar /Era o verdadeiro”. (Navegações, 1977).
Quando poderemos lavar as nossas mãos do desencontro, da poeira, e do desencanto que nos afasta uns dos outros nestes dias? Que superação das ciências humanas nos poderá perfilar na mente e no coração a sabedoria de Deus? Tema para meditação social e cultural. De novo Sophia:
Cinza destes dias
Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.
(Sophia), Coral