Por Padre António Bacelar
(sacerdote da diocese do Porto, temporariamente ao serviço do Centro Internacional do Movimento dos Focolares, em Itália)
Não é novo, desta vez, o silêncio deste sábado santo em que escrevo. E novos não são também binómios como distância-proximidade, deserto-cidade, virtual-real, local-global, vulnerável-imune, memória-projeção… Atravessam este dia, mas fizeram-se anunciar há já algumas semanas, sobretudo desde que o confinamento foi progressivamente introduzido nos nossos países. E continuarão a marcar os próximos tempos em escala ainda desconhecida.
Tudo pode ser porém uma oportunidade e que tem já tantos rostos de realização. O silêncio, por exemplo, é ocasião excelente de reconstrução das palavras, ajudando a fazer cair aquelas inúteis ou supérfluas e a recuperar outras que, assim parecendo, são afinal essenciais. Cuidar, proteger, servir, comunicar… ganharam outro brilho e passaram a declinar-se, com tantas outras, com o verbo amar. E este conjuga-se também com um “quero-te (ou quero-vos) bem”, como o próprio Papa Francisco não temeu usar na sua surpreendente intervenção telefónica de ontem, em programa televisivo em direto. Horas mais tarde impressionou o seu silêncio na Via Sacra numa Praça de São Pedro de novo vazia-cheia: deixou falar as palavras de compaixão, perdão, misericórdia, proximidade… gravadas nas vidas de quem teceu aqueles passos de paixão.
O distanciamento social passou frequentemente a significar uma maior proximidade relacional: o passeio pedonal de que troco, à vista de alguém com quem me cruzarei, deixou de ser sinónimo de indiferença ou até desprezo para passar a dizer vizinhança inclusive com uma saudação recíproca, antes inexistente; o espaço que respeito na fila do supermercado não me impede de interagir com quem me precede ou sucede, podendo até significar ceder a minha vantagem de estar um lugar à frente; a saudação que evitamos, enfim, aproxima-nos muito mais do que nos distancia! É claro que em causa estou eu mesmo, mas está igualmente o outro de quem não só quero preservar-me mas que também quero preservar. Porque afinal nos redescobrimos muito mais ligados do que havíamos imaginado.
São inéditas as imagens das nossas cidades ou das ruas que habito, aparentemente transformadas em desertos. Mas só aparentemente, porque as casas transbordam de vida e ruas e cidades são, mais do que estruturas, as pessoas que as fazem. Quem sabe então se a vida que aí frequentemente se reconstrói e aprofunda, não poderá também extravasar as paredes que agora a contém! E se poderá ser feita de modo a permitir-nos tocar ou avistar nelas a natureza tantas vezes ofuscada pelo nosso poder de contaminação e nossos estilos de vida.
As imensas possibilidades de comunicação de que hoje dispomos – já imaginamos o que teria sido esta pandemia há algumas décadas, sem estes recursos? – aproximam hoje o virtual do real. O primeiro é resgatado da avaliação frequentemente negativa de gerações mais velhas e o segundo poderá talvez tornar-se ainda mais real com a ajuda do… virtual. Ambos, enfim, podem tornar-se mais reais e verdadeiros, no encontro entre pessoas.
Mas também local e global se revelam dimensões que dificilmente se podem conjugar uma sem a outra. O mal de um vírus invisível aos nossos olhos, não conhecendo fronteiras nem muros, tornou-se comum e assim desvelou a urgência do bem, igualmente comum. E se dificilmente um país ou mesmo um continente pode, sozinho, fazer face a uma emergência do género, o que dizer das regiões, municípios ou simples povoações?
Estes tempos, revelando a nossa vulnerabilidade, despojam-nos da nossa pretensa imunidade que podemos reaprender a conjugar com comunidade onde mais do que ameaça uns para os outros, somos possibilidade de realização desde o nível primeiro do próprio subsistência.
É ainda incalculável o esforço da recuperação deste grande trauma e suas feridas ainda em curso. Agora que se vai vislumbrando a luz ao fundo do túnel, é natural que se fale do próximo futuro. Que tal projeção se faça contudo também com a memória: para não perdermos nem o melhor destes dias nem a possibilidade de correção de tantos desvios de rotas que estas semanas puseram a nu.
Concluo estas linhas – e assim também esta pequena série de reflexões partilhadas – quando me preparo para participar pela primeira vez na vida de que tenho memória, na Vigília Pascal pelos meios televisivos. Viverei assim, por algumas horas, a experiência da ausência da comunhão eucarística que atravessa muitas vezes de forma dolorosa a vida de muitos irmãos no Batismo.
Mas viverei também a certeza da presença de Jesus ressuscitado que, pela sua paixão, não falta nunca à sua Igreja e humanidade e especialmente se manifesta quando vivemos no seu nome, no seu amor. E peço – e empenho-me – para que também esta seja oportunidade o mais possível desfrutada de modo a que num amanhã nos reencontremos mais Igreja porque mais encontrados e sustentados pelo Senhor ressuscitado que, até pela ausência de outras fontes, sobretudo sacramentais, melhor poderemos ter aprendido a reconhecer e a exprimir.
Afinal é n’Ele, Senhor de todas as coisas, que mais profundamente se conjugam silêncio e palavra, distância e proximidade, deserto e cidade, virtual e real, local e global, vulnerável e imune, memória, presente e futuro.
Grottaferrata (RM), 11 de Abril de 2020