
Por Ernesto Campos
“Caprichos do génio epidémico”
(alegada causa da cholera, séc. XIX)
Não nos tem faltado, ao longo do tempo, emergências sanitárias. Desde a peste negra do século XIV às grandes epidemias do século XIX, a cholera morbus, a febre amarela, a peste bubónica e a pneumónica, gripe espanhola, já no século XX, de que terão morrido, em Portugal, 60 mil pessoas.
Ninguém, hoje, invoca o génio epidémico como causa destas emergências sanitárias. Em tempos de positivismo, a ciência sobrepõe-se à explicação mítica, apesar de em matéria de vírus nos movermos, ainda, nas brumas da ignorância e do mistério. Mas sabemos o suficiente para opor aos malefícios da virulência as medidas preventivas que se afiguram adequadas. Ainda nos séculos recentes a insalubridade do ambiente público e doméstico era o grande fator de risco. E, na impossibilidade de eliminar a causa para evitar o efeito, a medida que se impunha era o confinamento, na tentativa de impedir o contágio. É exemplo o cerco do Porto, em fins do século XIX, por ocasião da peste bubónica. É o que faz a autoridade política, porque não sabe o que mais há de fazer. Todavia, na emergência que agora vivemos, não sendo a falta de higiene pública o risco maior, mas, antes, o contacto físico, ao que se sabe, é mesmo a restrição de movimentos e o distanciamento social o que se nos impõe.
Preveem-se custos económicos pesados: desemprego, falta de produção de bens essenciais e, decorrentes destes, custos sociais não menos indesejáveis – privações, perturbação da paz social e da qualidade de vida. Pese, embora, tudo isto, não parece que haja alternativa: conviver, só por interposta tecnologia. Vemos, agora, quão significativo é um enérgico aperto de mão ou o abraço de um amigo.
A vida da Pólis tem os seus tempos fastos e os seus tempos nefastos. Em tempos fastos e tranquilos a vida flui como um rio que desenha meandros na planície se apressa na ansiedade do fim, alternando o cuidado do trabalho com o lúdico da festa; e o Estado limita-se ao seu papel de suplência e de serviço à sociedade civil da qual emana. Em tempos nefastos de perturbação da vida de coletiva, a relação Estado / sociedade civil inverte-se e a autoridade política sobrepõe-se à sociedade civil para promover o bem comum. Urge. Nenhuma sociedade pode “subsistir se não houver alguém que presida a todos movendo-os, igualmente, com impulso eficaz e com unidade de meios para o fim comum” (João XXIII). A autoridade política é, portanto, necessária em função das tarefas que lhe são atribuídas à sociedade civil, como componente positiva e insubstituível. Tempo nefasto este, tempo é de dar lugar à autoridade política.
Em outra emergência (já não sanitária, mas social e política) alguém sugeriu a suspensão da democracia. Ia caindo o Carmo e a Trindade, porque se ofendia o intocável dogma democrático, esquecendo que já os democráticos gregos o preconizavam em tempo de crise. E este tempo de emergência não está muito longe disso; mas suportar os constrangimentos do presente é o preço de amanhã a luta recomeçar com sucesso. O isolamento, a distância social, o confinamento, a obrigação de recolhimento domiciliário são o dever de hoje. Aceitá-lo tem um sentido, sobreviver. Mesmo os ritos litúrgicos, agora despojados de grandiosidade e esplendor, tempo de emergência é tempo de os viver em espírito e verdade.