Editorial: uma Páscoa invisível e interior

Por Jorge Teixeira da Cunha

No corrente ano, temos de viver a Páscoa em circunstâncias incomuns conhecidas por todos. Mas até isso pode redundar em favor da nossa meditação. De facto, vista à luz da fé, a realidade última é interior e invisível. Antes da história do mundo, o mistério pascal é da intimidade divina. É Deus que gera o seu Filho. Todas as outras realidades, os elementos, os viventes, têm aí a sua origem e o seu sentido. São especialmente os seres humanos que, no acto de fé, são associados de muito perto à vida originária que fruem e cuja força os cria, sustenta e salva.

Temos, pois, motivo para meditar, nas presentes circunstâncias em que nos é vedada a celebração pública e presencial da Páscoa de Jesus. Mesmo sem recursos exteriores, podemos viver intensamente pela oração que é uma forma de desejo a fonte pascal da vida. E podemos colocar no centro da nossa páscoa deste ano dois aspectos.

O primeiro é a contemplação do sofrimento criador e redentor vivido por Jesus, o Filho de Deus. De facto, a criação do mundo não é apenas um acto da força divina, mas é sobretudo um sofrimento. A antiga explicação de que Jesus morreu pelos nossos pecados não é suficiente. Jesus morreu de forma cruenta e violenta para que o mundo seja mundo. A riqueza transbordante da vida divina pela qual existimos como seres independentes e livres encontra uma força de oposição de origem inexplicável. Foi essa força que levou Jesus a enfrentar a calúnia, a tortura e a condenação iníqua à morte. O triunfo da vida é sempre acompanhado pela manifestação do mal, tanto do mal físico como do mal moral. Poderíamos fazer uma actualização para dizer que o combate que estamos a viver contra a infecção do vírus é mais um episódio desse combate sem fim da vida contra a oposição que sofre desde sempre e sofrerá até ao fim dos tempos.

A segunda meditação que ocorre fazer é sobre a própria vida que nasce na Páscoa de Jesus e que nos faz viver e agir. Nós, humanos do séc. XXI, temos tendência a esquecer que somos viventes e que a vida é acção e paixão. Confiamos mais na representação técnica da vida do que na própria vida. Caminhamos alucinados numa “gloriosa espontaneidade de viventes”, como lhe chama E. Levinas, sem darmos conta que a vida não é espontânea nem estática. Viver é crescer até à estatura da filiação divina, que é o nome interior da liberdade. É crescer até ao amor, à amizade e à fé.

Ora por este caminho interior, podemos celebrar a Páscoa com muita intensidade, mesmo sem as gratas manifestações sociais que a costumam acompanhar. O relato da paixão de Jesus segundo S. Mateus, que lemos este ano, alude a um sonho da mulher de Pilatos. Talvez essa alusão só esteja lá pelo mesmo motivo que o seu imbecil esposo está no Credo. Mas podemos ir por outro caminho e vê-la pelo prisma de alguém ainda não crente que viveu o mistério pascal pelo sonho que é a forma primeira pela qual Deus toca todos os seres humanos para os levar à fé. Boa Páscoa!