Covid-19: Oportunidade? Um olhar global a partir de Roma

Por padre António Bacelar (sacerdote da diocese do Porto, temporariamente ao serviço do Centro Internacional do Movimento dos Focolares, em Itália)

Nesta longa travessia de deserto ou noite escura há ainda certamente muito caminho a percorrer, à mistura com incertezas sobre os nossos próprios passos. Mas com as flores raras que também nos desertos florescem ou com o brilho das estrelas que só a escuridão da noite consegue desvelar, começa-se a vislumbrar a possibilidade de oásis, porventura maiores que o deserto, ou de dias que permitam perceber melhor esta noite.

Dizem-no não só as curvas estatísticas e os países que, antes de nós, abriram estes caminhos mas também a multiplicação de sinais, que públicos ou anónimos, podem estar a anunciar “terra à vista” nesta turbulenta navegação.

Já depois de ter fechado a última crónica foram disto exemplo a chegada a Itália de médicos e material de apoio da improvável Albânia, a incondicional adesão do Papa Francisco ao apelo de cessar-fogo do secretário geral da ONU, António Guterres ou, mesmo após diversos avanços e recuos, uma mais decidida opção por parte da União Europeia em disponibilizar meios para enfrentarmos juntos esta crise. Talvez porque percebamos melhor que aquilo que estamos a escrever – para usar palavras do primeiro-ministro de Itália, G. Conte – “é a nossa história e não um simples manual de economia”.

Mas talvez nunca como agora a história destes nossos dias é também escrita por tantos pequenos gestos que enchem as redes mas não estão ausentes dos grandes canais de comunicação audiovisual e impressa: dos inúmeros testemunhos de organização de compras para vizinhos à reconversão – por vezes genial – da produção de pequenas e mesmo médias fábricas, em resposta às hodiernas necessidades; da reorganização do socorro aos mais vulneráveis e esquecidos às mais variadas formas de partilha solidária de bens; do empenho dos profissionais não só da saúde mas de outras áreas vitais muito para além dos estritos deveres laborais aos numerosos voluntários acorridos em seu apoio… a lista seria interminável e desdobrar-se-ia em numerosíssimos exemplos de boas práticas.

Torna-se então pertinente a pergunta sobre o quanto o fim da pandemia, que todos esperamos e desejamos, será sinónimo de regresso à “normalidade” anterior, esquecendo o muito de positivo que nestas semanas se tem gerado.

Ninguém pensa obviamente que os tempos que virão trarão consigo, automaticamente, uma mudança radical, para melhor, à luz do que agora se vive. Mas sublinha-se em tantos âmbitos e níveis de pensamento e reflexão, como este tempo, mais do que um “intervalo”, é uma oportunidade, porventura única, de repensarmos e, assim, re-atuarmos o curso do nosso caminho como humanidade.

Um “acelerador de futuro” em que um “mal comum” nos dá a possibilidade, quase de um momento para o outro, de descobrirmos no quotidiano o valor do “bem comum”: nos bens relacionais que se tecem nas casas, vizinhanças e cidades, e em que se declina a própria humanidade; na consciência da vulnerabilidade e na impossibilidade de imunidade sem comunidade; na valorização da diversidade também no âmbito dos próprios desempenhos profissionais e sociais em caminho de reconhecimento de maior dignidade (nunca como agora é visível a importância de pessoal dedicado à limpeza e de lixeiros, de funcionários de supermercados, de motoristas como de todos os agentes de segurança e militares e, claro está, dos profissionais de saúde)… são alguns dos muitos tópicos do pensar que autores como L. Bruni, E. Granata, P. Ferrara entre muitos outros, vão articulando com tantos.

A revisão do lugar da economia como “penúltima”, antes e ao serviço da vida como realidade última ou, nesse mesmo sentido, da política como “bio-política” ou do próprio sistema capitalista submetido a uma necessária quaresma, fazem-nos esperar, com o contributo de todos, que algo de novo e mais profundamente humano se esteja já a gerar.

A estrada é longa e o “inimigo invisível” não está ainda, de forma alguma, derrotado. E até que alguém esteja sob o seu domínio a todos cabe saber parar. Impressionava-me há dias, a este propósito, a evocação, por uma rabina argentina, do episódio do êxodo quando o povo resolve esperar que Miriam recupere da lepra que a tinha atingido para poder prosseguir o seu caminho (Nm. 12).

Grottaferrata (RM), 04 de Abril de 2020