
Por M. Correia Fernandes
Lembro que no último número deste semanário escrevi que não devíamos pensar em guerra, no contexto atual da pandemia do coronavírus. Apontava sobretudo o caminho da esperança da Paz. Encontrei depois um escrito, ao qual aderi desde logo, e que diz: “A pandemia por coronavírus não é uma guerra. É uma situação difícil que obriga a adaptações importantes e temporárias. Todos os seres humanos estão do mesmo lado! Estamos em família, juntos, não há pais ou filhos a partirem para outros locais, a morrerem longe ou de forma inesperada. Por outro lado, a história recente indica que o homem tem vencido estas batalhas, mesmo que por vezes leve algum tempo. Há cem anos atrás (quase) todos os infectados morriam de tuberculose. Há trinta, o mesmo se passou com o VIH e a Sida. As vacinas estão a caminhos, outros medicamentos também. O tempo que demora a chegar a resposta é cada vez menor!”
São palavras sábias para o tempo de quarentena, como são sábias as palavras de José Tolentino de Mendonça: “No nosso imaginário contemporâneo o termo ‘quarentena’ remete-nos para mundos recuados, que a modernidade superou. A ideia de metrópoles inteiras em quarentena constitui uma absoluta estranheza. Não admira, por isso, que a primeira reação seja a de desconforto e medo”.
A utilização agora usual e universalizada do termo “quarentena” parece ignorar a força da sua origem: as quarentenas bíblicas eram períodos de quarenta, dias ou anos, de observância com fundo sentido religioso e de conversão. Lembre-se a quarentena dos anos de deserto, tempo de provação para o povo e tempo de revelação e descoberta da Divindade e da sua mensagem de transformação civilizacional; lembre-se a quarentena proposta pelo profeta Jonas à cidade síria de Nínive; lembremos a quarentena voluntária de Jesus no deserto, que conduziu ao apelo de conversão e à dinâmica do anúncio. Destes e de outros números quarenta (os quarenta dias de Elias para atingir o encontro com Deus, os quarenta anos do reinado de David e Salomão, os quarenta dias de apresentação no Templo do menino que seria o salvador) se formos na Liturgia da Igreja o tempo de quaresma (quadragesima), como tempo de caminhada para a Páscoa, tempo de penitência, de oração e de conversão, não apenas individual, mas de conversão social (uma dimensão pouco assumida pela sociedade).
A coincidência desta quarentena epidemiológica coincidir com a Quaresma pode ser também um sinal para o nosso tempo. Não demos conta da sua chegada, mas ele está aí; não captávamos o seu sentido, mas ele se nos impõe socialmente, para além da nossa vontade social; não por força das recomendações religiosas ou espirituais, mas pela força de imposição dos acontecimentos.
Deve ser por isso um tempo para que esta sociedade pense que aquilo que vai pondo de parte, com vozes proféticas ou de incidências sociais, são realidades que acabam inesperadamente por lhe cair em cima.
Como à passagem do deserto, como às gentes das cidades de Nínive (hoje em dia todas as cidades são de Nínive), os ventos da História recordam que nada para o Humanidade é seguro: nem os exércitos, nem a ciência, nem a riqueza, nem a economia, nem os projetos mais expectáveis.
Talvez pudéssemos ler como lia o Fernando Pessoa da Mensagem: “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro…”
Se substituirmos o “Ó Portugal” por “Ó Mundo de hoje, ó universo globalizado” temos um retrato que traduz o incerto nevoeiro em que nos situamos.
Também hoje nos surgem as palavras proféticas, como as do Papa Francisco, que não nos ameaçam de destruição mas nos trazem o conforto da esperança, como as que pronunciou na oração pelo mundo no dia 27 de março: “A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades”, e por isso afirma “todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento”.
Era essa também a palavra final do poema pessoano: “É a Hora”. Que seja esse também o caminho da nossa esperança. Ou que seja, no dizer de Tolentino de Mendonça, “o momento para irmos ao encontro daquilo que perdemos… uma redescoberta da força invisível da comunidade, como um tempo para ser”.
Que o trabalho e dedicação de todos seja bálsamo e esperança.