Neste ambiente mediático de pandemia, publicamos aqui notícias globais a partir de Roma. No olhar do padre António Bacelar que mais uma vez colabora com Voz Portucalense.
Por padre António Bacelar, sacerdote da diocese do Porto, temporariamente ao serviço do Centro Internacional do Movimento dos Focolares, em Itália
Se alguém no futuro me perguntar qual a maior enchente de pessoas na Praça de São Pedro e vias adjacentes de que tenho memória, não hesitarei em responder ter sido a do fim da tarde de sexta-feira 27 de Março de 2020. E se assim um dia puder responder, não o farei em registo de fácil ironia pela quase total ausência de pessoas nas ruas de Roma nessa ocasião e em todos estes dias. É que aí estávamos todos – parte significativa da humanidade – mesmo se paradoxalmente (i) mobilizados diante de um ecrã ou sob uns auscultadores.
Mas estávamos também todos os outros, carregados por um ancião curvado e de andar quase deambulante, levados até aos pés do magnífico crucificado da igreja de São Marcelo e do ícone de Maria Salus Populi Romani da Basílica de Santa Maria Maior. Estávamos – estamos – envolvidos e sustentados pela presença eucarística na história, na nossa história tão profundamente atravessada pelo mistério da dor mas em que Ele, o Senhor Crucificado Ressuscitado, não quer recusar habitar.
Eramos – somos – todos os que o Papa Francisco elencou na belíssima homilia-oração, a que tantas vezes importará voltar. Aqueles que, dia a dia, em cada manhã, na capela de Santa Marta, transformada também ela em catedral da Igreja inteira, o Papa sucessivamente propõe como intenção de cada Eucaristia.
Um abraço de Deus assim só pode ser dito – ainda que sempre palidamente – por uma Igreja que se deixa abraçar e assim se torna ela mesma capaz de o fazer. Não serve por isso tudo aquilo que pode impedir um tal duplo abraço. Disse-o a sobriedade dos gestos, do silêncio, do canto e das palavras; o sinal de uma página do Evangelho admiravelmente proclamada por um irmão no Batismo… aquele vazio-cheio de ninguém e de todos.
Diz-no-lo também o quotidiano de que Roma se continua a fazer como coração da catolicidade na Igreja Mãe e em todos os seus filhos e filhas que aqui habitam ao serviço desse pulsar, ritmado por um incessante dar e receber que lhe dá vida. Nas voltas ao mundo que diariamente de alguma forma damos, chegam do Oriente as notícias de algum alívio, sobretudo na China e na Coreia do Sul mas também de preocupação e empenho na Índia e em todo o sudeste asiático. Dos primeiros (e da Rússia e de Cuba) chegam ajudas não só oficiais – particularmente tocante a chegada de diversos aviões carregados de materiais e médicos – mas outras, por uma autêntica, ainda que invisível, “rede de fraternidade”: as máscaras que agora usamos vieram, endereçadas a nós, diretamente da China, mesmo não sabendo ainda precisamente de quem. No centro das nossas intenções de oração estão as populações concentradas em enormes centros urbanos e extensas zonas de pobreza e falta dos mínimos recursos sanitários e de higiene naquelas zonas e nos continentes sul americano e africano. Mas da África profunda chegam-nos também edificantes testemunhos de quem há poucos anos enfrentou uma epidemia não menos grave como foi o Ebola. E da Síria – mergulhada em drama que parece não ter fim – chegam encorajantes mensagens pessoais e de grupo que tocam muito fundo.
Neste corpo ferido da Igreja e da humanidade regressa a visão do “poliedro” de Papa Francisco, sem um centro tão determinado como na esfera, e onde todos têm a dar e todos têm a receber – porque ninguém é tão pobre ou tão rico que não possa dar ou receber algo. E talvez assim, possamos todos ser, também como Igreja, mais coração que batendo de forma particular em Roma, pulsa em cada sua célula pelo mundo fora.
Grottaferrata (RM), 29 de Março de 2020