Por Alexandre Freire Duarte
Quando, nos inícios de 2020, a revista Empire elegeu o quarto “Mad Max” como o melhor filme deste século, não seriam muitos a pensar que, dois meses depois, estaríamos a viver um cenário com ecos do mundo humano descrito no mesmo. Devido a esta similitude, bem como ao facto de tal obra ter passado há dias na televisão, aqui fica um esboço teológico da mesma.
Pois bem, é estranho que um espetáculo explosivo de violenta ação barroca (não aconselhado a todos), em que os diálogos (e os sentimentos da personagem que dá nome a este filme) surgem reduzidos ao mínimo, possa estar tão repleto de camadas simbólico-narrativas teológicas. Mas está, a ponto de ser difícil discernir as mais capitais. Isto dito, talvez não seja errado sugerir que o essencial é vê-lo como uma romagem de “saída” (de um Éden pervertido) e “regresso” (a um Éden permitido), em que as três personagens nucleares, cada uma a seu modo, encetam uma transformação pessoal. E isto, mediante a vivência de experiências autossacrificiais potenciadas – é de salientar – pelo encontro com a beleza do valor das virtudes (mais típicas) do sexo oposto.
Uma (Max), passa da descrença, tipicamente darwiniana, na esperança face a uma humanidade reduzida ao mais básico e selvático instinto de sobrevivência egoísta, para a confiança na redenção, se não de si, pelo menos dos demais, no que lhe permite crer num futuro mais humanizado. Outra (Nux [nome nos antípodas do da personagem anterior]), da busca demente da morte como meio de alcançar a honra pessoal em nome de um culto animalesco com tons niilistas que todos conhecemos do Boko-Haram e do Daesh, para a demanda sadia da dignidade dos demais através da entrega total da sua vida. Enfim, a terceira (Furiosa), da utopia de uma felicidade resultante da fuga de um contexto despótico e opressor, para a admissão de que o correto passa, não pelo abandonar esse contexto, mas pelo gastar a sua vida no liderar o mesmo, visando a libertação do amor por ele negado.
É possível que o diretor deste filme visceral não tenha cientemente querido fazer dele o que ele é: um esboço de soteriologia e escatologia cristãs. Todavia, é também impossível não se pensar que não foi capaz de se libertar das impressões digitais da nossa Civilização burilada pelo Cristianismo. E isto, não só por a mesma ter sólidas raízes históricas cristãs, mas por, tendo-as, elas serem verdadeiras e, assim, tocarem o desejo universal de Verdade que em Jesus se realizou.
Com efeito, visando apontar para a possibilidade de uma humanidade radicalmente justa no seio de um mundo salvo que, já sendo este, está igualmente ainda para vir, esta obra mostra que se o “inferno” pode entrar, sem clemência, na história da humanidade, o Céu pode vir até esta e extinguir, com o clemente incêndio do Seu amor a alimentar a comunhão humana, o lume do desamor daquele. Só assim se poderá reencontrar o sentido do Sentido, não se aceitando mais reduzir as pessoas a meios ou, pior ainda, a coisas.
(realizado na Austrália e USA, 2015; dirigido por George Miller, com Tom Hardy, Charlize Theron e Nicholas Hoult)