Covid-19: um olhar de Itália

Por padre António Bacelar, sacerdote da diocese do Porto, temporariamente ao serviço do Centro Internacional do Movimento dos Focolares, em Itália

Inicialmente tudo parecia confinar-se ao norte e a alguns municípios (Codogno, o mais célebre), pouco depois rigorosamente delimitados e classificados como “zona vermelha”. Não foi preciso, porém, muito tempo para que essa mesma classificação se alargasse a inteiras regiões e sucessivamente a toda a Itália. Vivemos, de facto, há já quase duas semanas em rigorosa quarentena com restrições relativas, primeiro, a todo o tipo de eventos, encontros e celebrações e, progressivamente, ao encerramento de escolas, Universidades e boa parte das atividades produtivas e comerciais. Também a mobilidade foi sendo gradualmente quase abolida: das viagens de para o exterior, àquelas dentro do próprio país, até às atuais limitações nas deslocações nas próprias localidades de habitação, incluindo as feitas a pé (em todas sempre obrigatoriamente munidos de “autojustificação”).

São cinzentos, por isso, os dias – por vezes também meteorologicamente falando… – como é grande o silêncio que reina ao redor e que nunca assim aqui havia experimentado. Há uma sensação de um “grande sábado santo”, entre o fundo da Paixão que vivemos e a certeza da Ressurreição para que caminhamos.

Mas sobre este “cinzento” e sobre este “silêncio” resplandece melhor a cor e a palavra.

A cor, certamente da Primavera que, quase indiferente, desabrocha exuberante. Mas a cor sobretudo dos tantos pequenos e grandes gestos que, de governantes a profissionais da saúde, de grandes empresários a povo anónimo e vizinhos antes quase desconhecidos, ilustram o que de melhor há de nós, na vida pelos outros doada. Pintam-na as crianças, em variados arco-íris nas varandas ou muros das próprias casas e, tantos, nas boas notícias – e também bom humor – que ainda mais circulam nas redes.

São mais escassas as palavras mas por isso porventura muito mais valiosas. Talvez porque a dor não é sua habitação. E são muitas e profundas as dores: as que vêm dos números que são sempre pessoas (infetadas, internadas, mortas – mais de meio milhar em cada um dos últimos dias) e que teimam em não deixar-se inverter; as que se elevam de gritos de exaustão de agentes sanitários; as que nos tocam, bem perto na alma e no corpo da própria Igreja.

E é então que a palavra se redescobre na Palavra talvez nunca como nestes dias acolhida, celebrada – pelos mais diversos canais de comunicação – e vivida. Aqui como aí – mas haverá ainda “aqui” e “aí”?… – são milhares os gestos quotidianos com que se reconstrói humanidade: de quem organiza não só as próprias compras mas também as do vizinho, incapacitado (e há que contar em média com duas horas de espera para acesso ao supermercado); de quem partilha as próprias e escassas máscaras ou pessoalmente as confeciona para os outros; de quem, enfim, redobra os próprios cuidados não só por si mas pelos outros – pelo Outro – que assim aprendemos a redescobrir.

Tornam-se já virais – de um outro vírus… – as palavras cantadas ou mesmo gritadas das varandas, como viral se tornou aquele ”tutto andrà bene” que acompanha o arco-íris pintado pelas crianças ou a bandeira tricolor. O maior silêncio com que estas palavras podem agora ser acolhidas permite percebê-las na cruz como única cátedra ou púlpito em que se podem conjugar: não são de superficial otimismo mas de esperança enraizada na certeza de que Deus em Crucificado e Abandonado fez suas todas as nossas dores e gritos. Por isso Ele mesmo nos está de alguma forma a dizer que tudo pode concorrer para o bem de quem assim o ama ou, pelo menos, balbucia o sentido da vida pelos outros.

Grottaferrata (RM), 21 de Março de 2020