
O meu país é feito de dois países
Um é dono e outro não
Manuel Alegre, poeta
Os milionários americanos costumam dizer que o que é preciso é ganhar o primeiro milhão; os milhões seguintes vêm por inércia, isto é, não é necessário fazer nada, eles caem em catadupa; basta que A empreste a B uma certa quantia e a cobre depois com juros e aí temos um ganho automático.
Por Ernesto Campos
É a dinâmica do capitalismo: o dinheiro faz dinheiro. Espera-se, porém, que esse acréscimo de dinheiro se traduza na actividade de A e B em riqueza autêntica, em indústria que produza novos bens e iniciativas de solidariedade e criatividade, numa palavra, num mundo melhor. Tudo depende do que as pessoas fazem com os bens que lhes estão confiado. É luminosa, a este respeito, palavra de João Paulo II na encíclica Centesimus Annus 42:
“Se por “capitalismo” se entende um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade huumana no setor da economia, a resposta é certamente positiva(…) Mas se por “capitalismo” se entende um sistema em que a liberdade no sector de economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa”.
As palavras-chave são aqui “sólido contexto jurídico” que enquadre o uso dos bens, “liberdade humana integral” e “centro ético” da economia. Estará tudo dito. Apenas três notas de reflexão. Uma é que, no inenarrável mundo do futebol, a catadupa dos milhões precipita-se em labirínticas engenharias financeiras, transferências, comissões e mediações… Ao contrário do velho princípio de eliminar os intermediários, no futebol, o lucro vem justamente deles, quantos mais, mais comissões, nova forma de ganho automático que enriquece uns sem fazer bem a outros.
É que – segunda nota – os milhares de pessoas envolvidas no futebol representam naturalmente a pirâmide estamental da sociedade portuguesa. No topo, em menor número, os que vivem na casa dos milhões. É o estamento dos grandes jogadores e treinadores de nível internacional e dos dirigentes que recebem muitos milhares. Há o estamento intermédio de funcionários e jogadores em princípio de carreira, a viver ao nível das centenas de euros ou de poucos milhares. E outros há cujo estamento, isto é, o estilo e modo de estar e viver a vida é modesto com salário mínimo ou pouco mais, ao nível das poucas centenas. É sobre o estamento mais elevado que vem agora o Estado aplicar o tal sólido contexto jurídico para garantir o cumprimento dos deveres fiscais: inquéritos, buscas e averiguações para punir quem defraudou o erário público. A opinião pública tem aplaudido tal iniciativa de reposição da justiça, porque ninguém está acima da lei. E estimam as estatísticas uma projeção de 40 milhões de euros que o futebol deve ao Estado.
Ora – nota final -, ainda, segundo as mesmas estatísticas, um quinto das crianças portuguesas está em risco de pobreza ou exclusão social. O que é um escândalo, quando a mesma estatística diz que o salário médio em Portugal é de 1300€, o tal estamento da classe média. Conclusão, se o futebol deve 40 milhões ao Estado, este deve-os àquelas crianças. Se os recuperar investa-os no bem estar delas. Não é esmola, é justiça.