
Ernesto Cardenal, nicaraguense, natural de Manágua, escritor e poeta, que fora sacerdote católico, um dos mentores da chamada “Teologia da Libertação”, proposta em meados do século XX como expressão dos universos revolucionários da América Latina e da luta contra as injustiças, faleceu na capital Manágua, em 1 de março de 2020, aos 95 anos recentemente completados.
Por M. Correia Fernandes
Por causa do seu envolvimento político, no derrube da ditadura de Anastasio Somoza (1979), sendo depois ministro da Cultura do governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional, dirigida por Daniel Ortega (de quem mais tarde se afastou denunciando “a revolução perdida” perante a ação ditatorial deste dirigente), mereceu uma admoestação pública no tempo de João Paulo II, quando este visitou a Nicarágua em 1983, e foi suspenso de exercer o sacerdócio. O Papa Francisco, em fevereiro de 2019, retirou todas as sanções canónicas que lhe foram aplicadas e reintegrou-o plenamente na Igreja Católica. Na sua morte esteve revestido das insígnias sacerdotais.
Notabilizou-se como escritor e poeta, tendo um dos seus poemas figurado na Antologia poética elaborada para as comemorações do Porto2001 – Capital Europeia da Cultura, com o título Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro, com um poema intitulado Salmo 136, o conhecido “Super flumina Babilonis”, que inspirou também um dos mais belos poemas de Camões, “Sôbolos rios que vão”. O poema de Ernesto Cardenal, em tradução de José Bento, reza assim:
Junto aos rios de Babilónia
Estamos sentados e choramos
Ao lembrar-nos de Sião.
Ao olhar os arranha céus de Babilónia
As luzes refletidas no rio
as luzes dos night-clubs e dos bares de Babilónia
E ao ouvir as músicas
E choramos
Nos salgueiros das margens
Penduramos nossas cítaras dos salgueiros chorosos
E choramos
E os que nos trouxeram cativos
Pedem-nos que lhes cantemos
Uma canção “vernácula”
“as canções folclóricas” de Sião
– Como cantar em terra estranha
Os cânticos de Sião? (…)
Se eu não preferisse Jerusalém
À alegria deles
E a todas as suas festas
Babel armada de Bombas!
Nos seus poemas, Cardenal revela o sentido da salvação bíblica e do amor cristão, o seu compromisso com a fé e a denúncia das injustiças sociais que o levaram à ação revolucionária. Escreveu um conjunto de poemas baseados nos salmos, procurando exprimir o seu sentido num universo mental de atualidade, em que os dramas e os males do passado que inspiraram os salmistas se reinventam em outros dramas do presente, talvez mais duros.
Apreciem-se estes exemplos:
Bem aventurado o homem que não segue as indicações do partido
Nem assiste aos seus comícios
Nem se senta à mesa com os generais no Conselho de Guerra (Salmo 1)
Ou:
Ouve-me porque te invoco
Ó Deus da minha inocência
Tu me libertarás do campo de concentração.
Até quando os líderes sereis insensatos
Até quando deixareis de falar com slogans
De pura propaganda? (Salmo 4)
Ou ainda:
Escuta Senhor o meu protesto
Porque não és Deus amigo dos ditadores
Nem partidário da sua política. (salmo 5)
O seu valor como poeta e escritor foi de tal forma reconhecido que conduziu á sua candidatura ao Prémio Nobel de Literatura, que não lhe foi atribuído. Recebeu, no entanto, um conjunto importante de prémios literários, como o Prémio Rubén Darío, o mais importante das letras nicaraguenses (em 1965), a Ordem cubana “Hayde é Santamaría” (1990) e o Prémio da Paz dos livreiros alemães (1980), o Prémio Iberoamericano de Poesia Pablo Neruda (2009) e o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana em 2010. Recebeu ainda a Legião de Honra do governo de França (2013) e o Prémio Theodor Warner de Stuttgart, Alemanha, concedido a pessoas que fizeram algo de notável para o diálogo entre as culturas.