Fomos confrontados com as tentações de Cristo. Dados messiânicos e dados simbólicos. Nos nossos tempos necessitamos da redescoberta dos rituais e dos dados simbólicos, que devem dar sentido às convicções e aos gestos criadores.
Por M. Correia Fernandes
As três tentações de Cristo podem definir-se como: 1) a tentação do egoísmo, da busca exclusivizante do interesse pessoal, da centralidade egotista do eu, sem dimensão de alteridade nem de relação; 2) a tentação do esplendor exibicionista, da convergência insensata do espetáculo como finalidade última das nossas atitudes; 3) a tentação do poder e da posse, do domínio, da riqueza acumulada.
Sendo tentações da missão messiânica de Cristo, são também tentações da humanidade de hoje e de sempre. Como afirma Santo Agostinho, as tentações de Cristo são as da condição humana que Ele meso assume.
Leiamos as notícias e o sentido dos acontecimentos. A primeira tentação situa-se no egoísmo dos indivíduos, dos grupos e dos Estados, desde os imperadores romanos aos impérios de todos os tempos que querem destruir outros impérios e sobrepor-se a eles, dos descobridores que escravizaram, dos saladinos que se sobrepuseram a civilizações, dos napoleões e dos invasores de outros países, às ambições genocídicas nazis e aos imperialismos totalitários dos movimentos estalinistas com tentáculos em todo o mundo.
A segunda tentação situa-se no universo do espetáculo, dos figurantes aparentes que se instalam por todo o lado, nas atividades criativas e no império do mundo do desporto e que extravasam para o inconsciente coletivo: são os ídolos das multidões, que hoje existem e centralizam dinheiro, poder e ambição e que amanhã se reduzem ao esquecimento por parte daqueles que os veneraram e que em torno deles geraram e alimentaram paixões deletérias.
A terceira tentação é ao mesmo tempo a mais corrente e a mais destruidora: a realidade invisível dos empórios económicos e monetários, das multinacionais que escravizam o trabalho de uns para garantiram a sua sobrevivência à custa também de muitos a quem remuneram principescamente para garantirem a manutenção do sistema. São as ambições dos Estados que se instalam noutros Estados para poderem usufruir das suas riquezas naturais, pela força e pela invasão, a partir de notícias falseadas com que se pretende justificar a ambição do domínio pela força. “Tudo isto te darei se prostrado me adorares”, diz o texto. Quem são os adoradores prostrados? Quem é o adorado?
O nosso mundo é um mundo de adoradores, já não do sol, mas da riqueza e do poder. É esse o início gerador de todo o mal. Atentemos no que escreve o Papa Francisco: “A convicção de que este poder maligno está ni meio de nós é precisamente aquilo que nos permite compreender o porquê de, às vezes, o mal ter uma força destruidora tão grande… Não pensemos que seja um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia… O demónio não precisa de nos possuir. Envenena-nos com o ódio, e tristeza, a inveja, os vícios” (Gaudete et exultate, n. 160). Ou citando Paulo VI: “O mal não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor… uma realidade terrível, misteriosa e medonha”.
Lembremos também que os cristãos, na sociedade de hoje, embarcam com facilidade nesta (in)consciência coletiva de participação em todas as dinâmicas sociais, na ausência de um espírito crítico valorativo. Como cidadãos, inseridos numa laicidade irracional e dogmaticamente imposta hoje em dia, são conduzidos neste embaraço da ausência de sentido ético; mas como crentes e dinamizados pelo evangelho, devem tornar-se expoentes da liberdade, da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”, aquela que provoca novas dinâmicas no mundo do hoje: as dinâmicas do bem e da verdade.
De novo escute-se o apelo de Francisco. “Hoje em dia tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento… Sem a paciência do discernimento podemos facilmente transformar-nos em marionetas à mercê das tendências da ocasião” (Ib., n. 167).
O grande mal é que as tendências de ocasião se tornam tão imperceptíveis e tão adstringentes que se tornam o cerne do nosso quotidiano. Valorizemos pois o esforço de discernimento.