Editorial: Que se passa com as leis?

A propósito da recente a despenalização da eutanásia, muitas pessoas se perguntam o que se passa com as leis. Se não protegem a vida, para que servem? Para onde se encaminha o processo despenalizador: em breve não haverá pena para o furto, para a mentira e a calúnia sem castigo? É necessário tentar perceber de onde vimos e para onde vamos.

Por Jorge Teixeira da Cunha

Nós somos os herdeiros do que se vem passando nos últimos cinco séculos. Até à reforma protestante, como notou Paul Ricoeur, a nossa vida comum estava estruturada na base de um tripé: uma fé; um rei, uma lei. Como sabemos, o que perdemos primeiro foi a unidade da fé, pois estamos divididos em diversas confissões e um grande número professa o ateísmo. Quando ao rei, ficou também pelo caminho, por ocasião das revoluções políticas. A lei perdurou mais pois, mesmo desunidos religiosamente e tendo instaurado a democracia política, mantivemos a universalidade da lei moral e jurídica. Com efeito, fundou-se a regra de vida na razão humana, mesmo sem Deus ou sem unidade da fé e no contexto do pluralismo político. A quanto parece, é este último bastião que está a ser posto em questão.

O processo despenalizador chegou primeiro à questões de fé, pois deixou de haver pena para quem não pratica a religião ou vive religiosamente de modo diferente e mesmo para quem blasfema Deus ou as coisas santas. Depois, começaram a ser despenalizados comportamentos morais como o divórcio, o adultério, o suicídio, o aborto. Hoje, chegou o momento de abater o último bastião que é a ajuda benévola para morrer a quem se encontra em estado terminal. Esta evolução foi vista como um crescimento na liberdade, pois a tolerância de comportamentos, antes penalizados, deixa a sensação de uma aumento da margem de acção ao indivíduo.

Como devemos pensar, como crentes, a evolução deste processo? Antes de mais, ocorre dizer que os crentes podem agir no contexto da cidadania e desenvolver iniciativas pacíficas em prol de metas que considerem justas. É o caso do apelo para um referendo à questão da eutanásia. É perfeitamente sensato ir nesse sentido. Mas há algo mais importante do que impor a moralidade pela lei. Trata-se de desenvolver uma atitude moral. É esta atitude que evitará que os crentes usem a faculdade de recorrer ao aborto ou à eutanásia. É essa atitude que levará ao testemunho público de um universo de respeito pelo valor da vida e pelos outros valores que a acompanham.

Grandes pensadores da Idade Moderna falaram de uma moral provisória e de uma moral formal. Mas somos nós, no século XXI, que vivemos esse contexto anunciado por eles. As leis tendem a ser cada vez mais separadas da realidade concreta e a deixar aos indivíduos a responsabilidade de decidir por si. Resta esperar para ver se a despenalização aumenta a qualidade moral dos indivíduos. Esta ideia não resolve todo o problema. Mas pode ser um início de reflexão.