Editorial: Caminhos de espiritualidade

Tenho diante de mim um pequeno livro de cor lilás com o título “Viagem pela espiritualidade”. Nele se encontram em diálogo várias personalidades em torno da obra “Da ciência ao amor – pelo esclarecimento espiritual”, de Luís Portela. Recentemente, uma figura reconhecida do nosso cancioneiro mediático, Pedro Abrunhosa, publicou um álbum com o título “Espiritual”, que reúne canções que foi escrevendo ao longo de anos da sua criação poética e musical. Sobre ele afirma que “Nos tempos fugazes de atenções efémeras, tento que as minhas raízes bebam da fundura dos mundos.”

Por M. Correia Fernandes 

Podemos perguntar-nos qual a razão desta atenção ao “espiritual” por parte de ambientes conspícuos na sociedade, como o da ciência e o da expressão musical (que sempre buscou a espiritualidade nas suas mais simples ou sublimes obras), por universos que lhes não costumam estar particularmente conexos. Há de haver uma razão e um sentido para esse dado. O certo é que quer a ciência quer a arte sempre foram sensíveis aos universos espirituais.

José Tolentino de Mendonça, na observação e leitura que lhe é reconhecida dos fenómenos sociais na sua relação com o universo teológico, escreve na obra “Pai Nosso que estais na terra”: “Também no campo da espiritualidade assiste-se hoje a uma «evaporação do pai». A apetência pela espiritualidade que difusamente marca isso a que se chama «o regresso do religioso» corre o risco de ser uma espécie de deriva emocional, a procura de uma zona de conforto que dá tudo e verdadeiramente não pede nada, uma diluição da consciência numa qualquer experiência fusional, tanto mais grata quanto menos responsabilizadora do sujeito. Não há experiência cristã sem descoberta do Pai”.

Na sua exortação “Gaudete et exultate” (2018) o Papa Francisco afirma que “Deus está misteriosamente presente na vida de cada pessoa… e não o podemos negar com as nossas supostas certezas”.

Será este dado da sensação pouco explícita da presença de Deus na condição humana, nas vivências e nos dramas de cada dia, que motiva esta espécie de regresso da explicitação da espiritualidade como procura de sentido para a vida quotidiana. Contudo, há que estar de sobreaviso para o que Francisco, nessa mesma exortação chama a “corrupção espiritual”, que designa como “uma cegueira cómoda e autossuficiente, em que tudo acaba por parecer lícito”.

A este tipo de espiritualidade difusa e pouco assumida, contrapõe a proposta cristã da santidade, entendida, ao invés de um misticismo inconcreto, como um empenhamento nas tarefas da sociedade humana conduzido pelo espírito da Palavra de Deus, da sua presença, ou, no dizer de Tolentino de Mendonça, na descoberta do Pai. Ou o exercício de uma “atividade que santifica”, encarnando na vida o sentido mais profundo da espiritualidade, em que Francisco sublinha a espiritualidade da ação do quotidiano ou a espiritualidade ecológica.

Os diálogos contidos no volume com que iniciei estas palavras revelam justamente esta dimensão da espiritualidade: uma ação no mundo científico, no universo da tecnologia, no universo da filosofia e do pensamento. É certamente neste universo que importa inserir a dinâmica de uma espiritualidade que pode ser frutuosa.

E creio que também no universo da vida, agora em discussão a propósito do debate sobre a eutanásia. Perante a degenerescência corporal, só o valor da espiritualidade pode ter sentido como realização integral e plena da condição humana. A consciência de que não somos apenas o nosso corpo, mas procurar o sentido pleno da pessoa. Deve ser este sentido da plenitude da pessoa humana que deve estar subjacente a todas as reflexões e decisões sobre a eutanásia, como sobre tantos universos de confronto da pessoa humana. E foi o que esteve ausente em tantas decisões da história que conduziram às maiores tragédias, a maior das quais é o desrespeito pela condição e pela pessoa humana.

É este sentido de espiritualidade, dos valores pessoais, éticos e morais, mais que as posturas ideológicas ou de conveniência política, que deve presidir ao debate e à solução a encontrar para este drama da condição humana.