Miguel Torga nos 25 anos da sua morte: memórias

Miguel Torga, pseudónimo assumido pelo médico Adolfo Correia da Rocha, nasceu em 12 de Agosto de 1907, em São Martinho da Anta, e morreu em Coimbra, há 25 anos, em 17 de janeiro de 1995.

Por M. Correia Fernandes  

Os seus primeiros poemas foram escritos com o nome de Adolpho Rocha: Ansiedade (1928), Rampa, 1930,Tributo (1931), Abismo (1932), bem como Pão ázimo, contos de Adolpho Rocha (1931), editados pela revista Presença, em que tinha começado a colaborar, colaboração que depois abandonou.

A primeira obra tendo como autor Miguel Torga foi O outro livro de Job (1934,título que já anunciava muitos caminhos da sua poesia, quer por ter escolhido um tema bíblico, quer pelo simbolismo da personagem dramática de Job, a um tempo sofredora, inconformista e de forte dramatismo interior. Toda a escrita de Torga é assim, nas suas múltiplas facetas itinerantes.

O nome Torga revela também algumas dessas dimensões: homenagem a duas figuras de nome Miguel (Cervantes e Unamuno), que são associadas à força agresta da natureza no arbusto torga, planta bravia do solo montanhoso de fortes raízes e com grande capacidade de resistências às agruras do tempo e à aridez do solo, de caule forte e direito. Era esse o seu projeto humano.

Esta lembrança de Miguel Torga leva-me a recordar um escrito meu de 1997, que se encontra registado no voluma “Pós-leituras, páginas de literatura portuguesa e comparada”, publicado por Edições ASA, 1999, onde recolhi “Três reflexões sobre Miguel Torga” (p. 131-139). Aí se lembra um dos últimos textos publicados em vida do autor, o Diário XVI, uma das mais autobiográficas obras do autor, em que escreve: “Aproxima-se o fim./ E tenho pena de acabar assim./ Em vez de natureza consumada, /Ruína humana”. (Poema “Requiem por mim”)

Com o título “Uma Páscoa de Torga”, registo uma passagem do Diário XIII, com data de 15 de abril de 1979, e “com a localização quase obrigatória em S. Martinho de Anta (onde repousa o que resta do seu corpo e donde irradia o que ficará do seu espírito”.

Diz essa passagem: “Ser incréu custa muito. É dia de Páscoa. O gosto que eu teria de beijar também o Senhor, se acreditasse! Assim, olho a fé dos outros em aleluia, e fico nesta tristeza agnóstica que faz da vida uma agónica aventura sem esperança de ressurreição.”

Recorro agora ao que então escrevi:

Sempre me surpreendeu a confessionalidade dos Diários ou de outros títulos onde os escritores fazem o mesmo tipo de revelações, essa estranha capacidade de desnudamento, de revelações e de projeção própria, esse misto de sinceridade e de fingimento desse tipo de escrita, velho como o universo e banal como a adolescência.

Qualquer escritor fala de si, mesmo quando afirma falar dos outros ou do mundo.

Miguel Torga revela todo o universo interior de m homem que sentiu profundamente avida, a natureza, a sociedade, os mistérios da existência, êxitos e fracassos. Uma das constantes da escrita de Torga é o rigor com que aborda interrogadoramente o universo do sagrado, mesmo quando é para o negar.

As linhas do Diário XII que transcrevemos são a confissão de uma não fé. Elas possuem por outro lado um espantoso espírito de fraternidade cristã, que consiste em projetar no seu semelhante a realização das aspirações que não pode realizar, esta espécie de sentido de transmutação vital de uma humanidade comum assumida, ao mesmo tempo sofredora e triunfante. “Não há alma mais escancarada e complacente do que a minha”, escreveu um dia (Diário XV).

Deixo agora este misto de religiosidade natural e popular (tudo o que é religioso é natural e popular, toda a religião é uma relação do Povo com Deus) e de interpretação teológica do universo:

Com flores de rododendro cor de fogo / Anuncio aos sentidos / O milagre / Da ressurreição. / E o Cristo vivo em que se transfigura / A mais vil criatura / Que atravessa a praça./ É como que uma graça /A mais da primavera./ Ah, quem pudera / Todos os dias /Olhar o mundo assim, repovoado / De fraternidade, / Quente de um sol desabrochado /Em cada pétala da realidade!

Eis como a “agónica aventura” se pode transformar em esperança de um mundo “repovoado de fraternidade”.

Cartas a Miguel Torga apresentadas na sua terra natal

Registo agora a notícia recentemente divulgada.

O livro “Cartas para Miguel Torga”, com prefácio e organização de Carlos Mendes Sousa, publicada pela editora D. Quixote, foi apresentado no Espaço Miguel Torga, em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, e reúne parte da correspondência que foi dirigida a Miguel Torga (1907-1995) entre 1930 e 1994, portanto ao longo de mais de trinta anos. Entre os cerca de 100 remetentes encontram-se figuras como Teixeira Pascoaes, Natália Correia, Óscar Lopes, Gonzalo Torrente Ballester, Ribeiro Couto ou Jack Lang, antigo ministro francês da Cultura, bem como Mário Soares, Sophia de Mello Breyner Andresen, Mário Gonçalves de Oliveira, Ilse Losa, Adolfo Casaes Monteiro, António Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira e Alves Redol.

As eventuais respostas de Torga, a que o autor ainda não teve acesso, esperando no entanto que possam ser conhecidas no futuro, porque pertencerão ao espólio dos destinatários, lançariam luz sobre o entendimento que delas teve Torga.

Carlos Mendes Sousa, apesar de salientar a opinião de Eduardo Lourenço, que lamentava que o facto de residir em Coimbra o afastava das tertúlias da capital, assinala “um conjunto de cartas que dão conta de um intenso convívio intelectual e que se destacam pela amizade, generosidade, beleza e frontalidade das palavras que contêm”: as missivas de Vitorino Nemésio, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade e Eduardo Lourenço.