Ser padroeiro de jornalistas não é tarefa fácil

O dia litúrgico de S. Francisco de Sales ocorreu em 24 de janeiro deste último ano da década, como ocorre em cada ano e ocorrerá nos próximos.

Por M. Correia Fernandes

Mesmo que nos jornais deste dia que lhe é liturgicamente dedicado e em que escrevo, 24 de janeiro de 2020, se afirme mediaticamente que “o Relógio do Apocalipse está a 100 segundos do fim”, do planeta, entenda-se. Não se diz em titulares que a idade da terra andará pelos 4,5 mil milhões de anos, e por isso os 100 segundos faltantes corresponderão a algo como 125 milhões de anos. Estejamos pois descansados que a coisa não é para os nossos dias.

Não deixa, no entanto de ser significativo que quando a Bíblia fala do fim dos tempos não se quer tomar isso a sério, mas quando o relógio dito do Apocalipse fala do assunto, todos os espíritos mediáticos se põem em bicos de pés.

Para os nossos dias detenhamo-nos na ação civilizacional de São Francisco de Sales. Digo civilizacional, porque o espírito que transmitiu, as dinâmicas que insinuou, marcados pelo ideal cristão, vigorosamente inserido na condição humana, traria por certo ao mundo mais uns milhões de anos de vida.

Sendo designado pela Igreja Católica como padroeiro dos escritores e jornalistas, devia ser comum que fosse anualmente lembrado por essa missão protetora. Lembramos que Voz Portucalense organizou nos últimos anos iniciativas orientadas para a valorização da sua obra e do seu exemplo. Recordamos conferências e encontros por ocasião do seu dia, a que se associaram também os Bispos do Porto. Para tais encontros foram sempre convidados os órgãos de comunicação social. Por esta data em 2019 falava-se no projeto de uma Jornada Diocesana sobre comunicação social, que ainda não chegou a realizar-se, mas que vai pairando no horizonte para antes dos 100 segundos que ainda nos restam de mundo.

Lembramos aqui o exemplo da Federação dos media católicos franceses, que organiza cada ano, desde há 23 anos, as “Jornadas S. Francisco de Sales”, em Lourdes, contando com a participação de centenas de profissionais e jornalistas, continuando a refletir sobre a questão formulada o ano passado: “Peut-on être journaliste et chrétien?” (pode ser-se jornalista e cristão?).

Claro que pode, e que deve. Mas o confronto com o estilo e prática da temática que na comunicação social entre nós se baralha, o menos que se pode dizer é que coisa difícil deve ser. Os nossos media, quando dão importância ao fenómeno religioso e aos acontecimentos eclesiais, não são motivados pelo seu sentido como mensagem para a humanidade, nem pela sua dimensão social ou cultural, mas pelo escândalo, real ou potencial, geralmente suposto. Quando esse odor se pressente, não faltam páginas, que no entanto se poupam por exemplo para a divulgação da mensagem do papa Francisco sobre o sentido da prática e da ação política e da ação mediática.

Recordamos aqui que a mensagem do Papa, anunciada em dia de S. Francisco de Sales, acentua a responsabilidade dos profissionais de comunicação no esforço de estabelecer uma relação positiva com o outro, no sentido de uma comunicação assente na verdade, na sua componente de construção e edificação, com a narrativa de histórias e dados que valorizem a dimensão do presente e a preservação da memória.

Uma figura culturalmente exemplar

Retomo agora o que escrevi na VP de 14 de janeiro de 2009: “Ser padroeiro de jornalistas não é tarefa fácil. Indisciplinados por natureza e por cultura profissional, senhores de um propalado quarto poder, donos da fama frágil e da infâmia fácil de qualquer mortal, consciência coletiva da sociedade – tudo isto é excessivo para um padroeiro”.

A verdade é que poucos jornalistas hodiernos saberão quem foi S. Francisco de Sales (não teve acidente de helicóptero nem esteve ligado ao coronavírus). Quem sabe? Se fosse desse tempo teria sido conduzido para o campo de Auschwitz. Menos ainda farão ideia das razões de ser do padroado que lhe é atribuído. Importa por isso situar no tempo essa figura ímpar de um dos períodos mais conturbados da história da Igreja e da história da Europa. Vivendo (de 1567 a 1622) em pleno período da chamada Reforma, soube contrapor, na sua ação pastoral e cultural, a um certo pessimismo de princípios morais rigorosos e bastante rígidos de influência calvinista (S. Francisco foi Bispo de Genève, na Suíça, a pátria mãe da ação de Calvino), um sentido de valorização da dignidade humana, um otimismo humanista de fundo evangélico sabiamente conjugado com os ideais renascentistas que valorizavam a pessoa humana como sede de sabedoria.

É essa dimensão da presença do divino na condição humana que conduziu a uma das mais conhecidas e apreciadas facetas da sua personalidade pastoral e literária: a bondade, a paciência e a simplicidade. A “doçura”, dizemos livros ascéticos. Uma especial capacidade de convicção leva a que os seus sermões e os seus escritos se viessem a tornar paradigmas de uma arte de convencer, que tinha muito do vigor oratório dos grandes pregadores e escritores do seu tempo, ao estilo gosto retórico da época, que deu origem a figuras posteriores como Pierre Corneille (1606-1684), Molière (1622-1673), ou Jean Racine (1639-1699), mestres da elaboração teatral barroca, ou a figuras como Bossuet (1627-1704), Fénelon (1651-1715), célebre como orador, moralista e educador.

Tudo nascia em Francisco de Sales de uma fé forte e dinâmica, de um estudo da percepção dos sinais divinos na condição humana e dos sinais de humanidade que levam à descoberta de Deus. Por isso várias obras o consagram como humanista e escritor clássico.

O exemplo de S. Francisco de Sales deve tornar-se modelo para um jornalismo moderno, na busca de um crescimento equilibrado, pessoal, social e cultural, de uma força ascendente que possa conduzir à sensibilização social para os valores da justiça, da paz, da concórdia, da cultura da solidariedade, da entreajuda, da não violência, da justa repartição da riqueza, da complementaridade entre capital e trabalho, da política como serviço social (como ensina o Papa Francisco), da interação criativa entre o homem e a natureza, na preservação valorização dos recursos, na harmonia entre a pessoa, as estruturas sociais e o meio ambiente.

Lembremos de novo, de todos os seus escritos, o mais divulgado (já que o “Tratado do Amor de Deus” é mais teológico e místico) que é a “Introdução à vida devota”, datado de 1609, que se tornou uma espécie de manual de vida cristã para os seus tempos (foi impresso mais de 40 vezes na vida do autor).

Observações em complemento desta recordação: 1) Pode o leitor ter acesso à edição recente deste livro, oportunamente publicado pela Voz Portucalense; 2) É curioso realçar a similitude de título e de conteúdo entre a “Imagem da Vida Cristã”, do clássico português Frei Heitor Pinto (1528-1571) e a “Introdução à Vida Devota” de Francisco de Sales.

É pois esta figura da Igreja, clássico da literatura da língua francesa, que Dom Bosco tomou como inspirador da sua Congregação Salesiana, e cujo túmulo se pode visitar em Annecy, na Alta Saboia, onde a sua memória é recordada também por uma basílica (onde está o seu corpo) e por uma estátua grandiosa à beira do lago, que faz jus à sua grandeza como Bispo e escritor.