
O cinquentenário da morte de Régio foi evocado numa exposição e num colóquio, iniciativa do Centro de Estudos Regianos e da Fundação António de Almeida, aqui anunciada na semana passada. Praticamente todas as comunicações desse colóquio fizeram referências aos modos como a produção literária de Régio tem implicada em si uma densa problemática religiosa. Os termos dessa equação, particularmente desenvolvidos pelas intervenções dos professores José Carlos Seabra Pereira e Maria Luísa Aguiar, mantêm-se integralmente atuais, comprovando que os verdadeiros escritores criam uma obra intemporal.
Foi sublinhado em várias palestras que Régio não cultiva uma escrita eufórica. Por vezes, parece que grita uma esperança desesperada, numa obra que todavia é frequentemente pontuada pela confissão de um ser apaixonado do Absoluto. Ao procurar obsessivamente a verdade do finito no Infinito, o literato vila-condense vive de um dissídio interior insanável, que o leva a “crer não crendo”. Confessa precisar de Deus, mas o seu insuportável silêncio persegue-o e tortura-o. Interroga o divino, mas deixa sempre esta interrogação em suspenso: «Desisti de saber qual é o Teu nome,/Se tens ou não tens nome que Te demos, (…) Desisti de Te amar, por mais que a fome/Do Teu amor nos seja o mais que temos (…) Tu é que não desistirás de mim» (Ignoto Deo).
Na sua comunicação a que deu o título provocatório «as virtudes do mal em José Régio», anotou José Carlos Seabra Pereira que o escritor leva até ao extremo a afirmação do poder satânico do mal para se abrir à inquietação espiritual da busca de Deus. Na verdade, percepciona-se na sua obra, como que saída do poço da alma, um sujeito intrinsecamente dual, que estabelece uma tensão dialética, vivida sob o signo de uma dramática cisão entre a imanência e a transcendência. Confessando-se camoneanamente como «bicho da terra, vil e tão pequeno/que nem sequer aprende a ser terreno», derrama na mesma composição poética esta entrega suplicante: «nos silêncios do meu verso,/Fala tu! Voz Suprema do Universo» (Sarça Ardente).
Régio rejeita a descomprometida visão optimista da vida, nunca conseguindo fugir ao confronto com aquilo que Torga chamou a «negrura de um enigma». É dele esta confissão: “creia ou não creia, não posso viver sem Deus. Deus é a minha força, o meu refúgio, a minha companhia. E nada sei sobre Deus, – nem mesmo se existe!”. Os seus textos, mesmo quando refletem a existência humana com as cores da paródia e do grotesco, atingem uma densidade teológica sólida, que nada tem a ver com a inocuidade daquela literatura devota que nos põe Cristo «a pregar transparências num cenário de branduras idílicas»[1]. Seabra Pereira destacou, na sua comunicação, que se percebe na obra regiana uma posição reativa contra as aburguesadas formas de abordar as relações entre a condição imanente do homem e seu destino transcendente. Sem se identificar com as formas teológicas que usa frequentemente nos seus enunciados, Régio elabora um modo de pensar que metafórica e alegoricamente faz alusão a qualquer coisa que está para lá do que a nossa condição humana pode conter. Seabra Pereira lembrou, a este propósito, a avaliação de Eduardo Lourenço, ao notar que para José Régio «tudo é alienante, tudo é alienação, salvo Deus».
Será muito útil revisitar este literato, quando, passados 50 anos após a sua morte, muita da nossa literatura religiosa se limita a propalar filosofias consoladoras, que pouco servem para abrir horizontes a uma cultura fechada num imanentismo cru, que se abisma na «globalização da indiferença».
(texto de Manuel António Ribeiro)
[1] Torga, Miguel Diário XIII.