Editorial: Uma lembrança a D. Manuel Martins no seu aniversário

O antigo Bispo de Setúbal completava, em 20 de janeiro deste ano, 93 anos de idade. Natural de Leça do Balio, concelho de Matosinhos, faleceu aos 90 anos em 24 de setembro de 2017, e foi sepultado no cemitério da sua terra natal.

Por M. Correia Fernandes

O Presidente da Caritas Portuguesa, Eugénio da Fonseca, escreveu um livro de memórias em que apresenta “alguns dos momentos mais significativos e desconhecidos do grande público” da vivência do autor no convívio com o primeiro Bispo de Setúbal. A obra, com o título “Testemunho de duas vidas compartilhadas” (ed. Paulinas), foi apresentada no salão nobre da Câmara Municipal de Setúbal, com a presença da Presidente da autarquia, Maria das Dores Meira e com palavras de apresentação propostas por Guilherme de Oliveira Martins, administrador da Fundação Calouste Gulbenkian. A obra tem prefácio do General António Ramalho Eanes, o primeiro Presidente da República eleito democraticamente, em 1976, que recorda o acolhimento inimistoso e de rejeição de que o Bispo foi alvo em 1975, ao qual soube resistir com valentia humana e cristã, e contrasta com o “calor afetivo, reconhecido e agradecido, no carinhoso adeus ao Bispo” em 1998. Recorda ainda Ramalho Eanes a sua palavra e a sua ação “em prol de todos, dos mais desfavorecidos em especial”, a coragem, a capacidade de atenção aos problemas e às pessoas, a nobreza do seu pensamento, a sua personalidade, que lembra como “fonte de inspiração”.

É esta circunstância favorável para recordar que D. Manuel Martins é um fruto sazonado da Diocese do Porto, onde nasceu, estudou, se formou em humanidades e teologia, foi professor do seminário, pároco, e Vigário Geral da Diocese até ser Bispo. Recordamos que era vice-reitor do Seminário Maior do Porto quando D. António Ferreira Gomes foi obrigado ao exílio, figura de Bispo a quem sempre acompanhou. A destituição de vice-reitor levou-o ao desempenho da missão de pároco em Cedofeita, experiência pastoral que foi determinante na missão de Bispo. Foi depois Vigário Geral da Diocese antes de ser nomeado Bispo de Setúbal, em 1975. A força e determinação com que assumiu esta missão, em tempos tão difíceis de contestação social e política, conduziram a uma progressiva admiração por parte da Igreja e da sociedade, que levou a Câmara de Matosinhos a assinalar a sua personalidade numa estátua e na titularidade de uma escola e distingui-lo, como o Município de Setúbal, como Cidadão Honorário da Cidade. Nesta cidade mereceu a atribuição do seu nome a instituições como uma Escola Secundária e o polo da Universidade Moderna. Entre as distinções que recebeu, destaca-se a Grã Cruz da Ordem da Liberdade (a título póstumo, 2017).

O seu regresso ao Porto ficou marcado por um humilde e simples espírito de serviço, colaborando com a pastoral da sua paróquia, a par das frequentes intervenções na comunicação social e no diálogo pessoal, onde continuou a afirmar os valores cristãos da solidariedade e do espírito fraterno. Foi pessoa de uma espiritualidade encarnada, de pensamento e sentimento humilde e profundo, como se pode ler nos últimos escritos publicados, entre eles o livrinho “Partilhar é bom”, publicado também pelas Paulinas (janeiro de 2019): “A minha vida tem de ser sempre uma harmonia. Que nunca seja causa de qualquer desafinação” (p.26); “Sou um ramo. Se me separo do tronco corro o risco de morrer” (p.28); “Silêncio é um sacramento. Afasta-te e fica sozinho com ele” (p. 37); “Eu sei e sinto que é com o coração que penso, imagino, projeto, espero. Por isso felizes os de coração puro” (p.56). São apenas exemplos de um Bispo atento ao essencial.

Esta homenagem lembra-nos e corporiza também o mérito, o valor e a importância das figuras da Igreja na sociedade portuguesa. O reconhecimento que lhe é prestado pelos poderes públicos e por entidades culturais e sociais são sinal de que a palavra dos profetas é indispensável e construtora de novas dinâmicas do entendimento e da vida das comunidades. Um certo laicismo emergente não sabe ler estes sinais. O dogmatismo anti-humanista que assume constitui a melhor valorização da importância da espiritualidade na vida das sociedades e do equilíbrio das pessoas.

Vale a pena pensar como o espírito da religiosidade equilibrada e atenta traz à condição humana, nas suas múltiplas dimensões do viver, do conviver, do pensar, do criar valor humano e cultura, dimensões da pessoa que a elevam e lhe dão sentido e edificam o projeto de sociedade humanizada, com o respeito essencial. “A única coisa sagrada que há no mundo é a pessoa humana”. (D. António Ferreira Gomes).

Por isso, lembrar a pessoa de D. Manuel Martins, por parte de instituições eclesiais, sociais e autárquicas, exprime a grandeza do coração e do espírito humano. Do qual D. Manuel Martins é um exemplo, na pequenez da sua estatura e na grandiosidade do seu espírito e da sua ação.