
“Liberdade é o ascendente que temos sobre nós mesmos”
Ugo Grócio, humanista, séc. XVII
Viver e agir em liberdade e pensar pela própria cabeça são direitos intrínsecos constitutivos da pessoa humana e expressão da sua dignidade tal como a liberdade religiosa ou a opção política; ninguém no-los dá como se fossem um benefício e ninguém no-los pode retirar nem ferir como se pode retirar, por exemplo, o direito de conduzir automóvel ou de beneficiário da segurança social.
Por Ernesto Campos
Aqueles direitos, enquanto inerentes à dignidade da pessoa, só têm como limites outros direitos próprios e os direitos dos outros. Pode-se pensar livremente e limitar o agir por causa do bem dos outros, também pessoas, portadoras de igual dignidade, ou do bem próprio.
O pensamento cristão não tem dificuldade nenhuma em fundamentar este conceito de pessoa: lê-o definido logo nas primeiras páginas da Bíblia: Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança. Isto diz tudo e este tudo é o infinito, o qual projeta a criatura humana homem para além de si. É por isso que, ao longo dos séculos, até independentemente da fundamentação bíblica, se tem procurado aprofundar o ser pessoa.
Já os gregos revelavam, em germe, uma incipiente noção ao definir o homem não só como animal racional mas também social e político, isto é, noção limitada ao habitante da polis, não ao estrangeiro bárbaro. Doutrinas anteriores ao Cristianismo referem um dom da Providência que habita o homem, e Cícero, escritor romano no século I a. C., não hesita em considerá-lo sujeito (não objeto) de direitos. Mas dignidade é apenas o estatuto social de alguns, cidadãos romanos, em razão do mérito, do cargo ou da excelência de virtudes cívicas ou militares. Era o bom nome. Só ao longo da Idade Média, desde Boécio a S. Tomás de Aquino, se pode interpretar a racionalidade como extensiva a todas as criaturas humanas e a intervenção de Deus como garantia incontornável da sua dignidade. Na modernidade descobre-se que o ser humano não se esgota no racional; e junta-se então à natureza racional, a consciência moral, a autonomia, a sociabilidade, a liberdade para configurar a dignidade da pessoa humana que já o Cristianismo essencial nos legara e que a lei natural corrobora.
A lei natural “é a luz do intelecto infusa por Deus em nós”, exprime a dignidade da pessoa humana e estabelece as bases dos seus direitos e deveres. É, todavia, neste contexto de descoberta da noção de pessoa que vemos, ainda hoje, abomináveis desconsiderações da dignidade humana. Com efeito, a condição humana, que hoje se lê em chave de liberdade, é também lugar de contradição. Ninguém diria que a racionalidade, a consciência, a autonomia, a sociabilidade são alguma vez excessivas; mas a liberdade, essa, volta-se, não raro, contra a mesma pessoa. Veja-se o caso do abuso da liberdade de expressão e de se usar o humor pela palavra e pela imagem com crueldade e desprezo, por exemplo, pela fé e até tão-só o bom nome dos outros; agora é no Brasil com a figura de Jesus Cristo tratada de modo perverso num texto humorístico.
O mais iníquo é a lei civil brasileira atentar contra a lei natural “graças à qual conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar”, como diz S. Tomás de Aquino. Chama-se a isso o uso da razão.