O Cinema visto pela Teologia (6): o filme “Graças a Deus”

Sabemos bem o quão custoso é quando, mesmo de um modo amável, nos despertam para traços pessoais nossos que denunciam falhas de carácter mais ou menos voluntárias e (ou) por nós ocultas. Também por isso, dificilmente algum católico verá o filme “Graças a Deus” sem se sentir incomodado pelo que ele retrata. Mas por mais que tal possa ser doloroso, é impossível não experimentar apreço por esta obra, inclusive devido à abordagem sóbria e compassiva a ela conferida, com realismo e enorme tato artístico, pelo seu realizador.

Por Alexandre Freire Duarte

Baseado em eventos verídicos, este filme aborda, não tanto os horrendos atos pedófilos de um padre católico, mas as penosas e duradouras consequências dos mesmos na vida (também crente), quer das suas vítimas, quer das daqueles que com estas convivem. Mas não só: ele coloca ainda, com convincente sensibilidade, o dedo nessa grande, embora menos visível, ferida que é a difusa cumplicidade, fruto de silêncios diversamente motivados, perante os casos de imoralidade no seio da nossa tão amada Igreja; no nosso seio, pois.

Do ponto de vista teológico, podemos sintetizar toda esta obra mediante a consideração do seu início e do seu fim. Se no começo do filme, o Bispo de Lyon é exibido a expor, de dia e uma posição elevada, o Santíssimo Sacramento sobre aquela cidade, mas sem sabermos se alguém está a prestar atenção, no seu término temos uma cena quase invertida desta. Agora é alguém que olha, de noite e de baixo para cima, para onde antes estivera Jesus Eucarístico exposto às mãos daquele Bispo, também sem nos ser dado a saber se alguém está atento a esse olhar.

Sabemos que Deus está sempre a olhar com amor solícito para todos nós. Mas para muitas pessoas, até as mais crentes, isso já não basta. Para elas, a Igreja – todos nós batizados – mais do que querer parecer preocupada com o que a fere, ainda que quiçá apenas como reflexo da sociedade mais vasta, precisa mesmo de se preocupar energicamente com isso. A nossa indecisão e adiamento interventivo face a tais realidades – que mais cedo ou mais tarde todos conhecerão, nem que seja pelo atuar de quem nos despreza e malquer – está apenas a contribuir para poder vir a tornar irrelevante, para muita gente, a nossa futura conduta. De que nos adianta dizer “nós também sofremos, mas temos um Salvador”, se, depois e no que nega a possibilidade d’Este por nós agir, somos narcisistas, abusamos do poder e, no que deu origem ao título deste filme, damos “graças a Deus” por as coisas não serem mais “conhecidas”?

Hoje mais do que nunca, o mundo, tão amado por Deus mesmo quando vivendo na noite, olha para nós. Não todo, nem apenas com os bons intuitos daqueles que ainda esperam que nós, pessoas do Dia, em si confiemos, conquanto não vivamos como se Aquele nos fosse indiferente. Mas olha para nós. Assim, há que reconhecer que a nossa própria ação ou inação podem fazer com que Deus se torne, respetivamente e para tantos dos nossos coevos, mais credível ou mais inverosímil.

(* França, 2018; Dirigido por François Ozon, com Melvil Poupaud, Denis Ménochet e Swann Arlaud)