Coro da Sé do Porto: notas sobre a Oratória de Natal de J. S. Bach

O habitual Concerto de Natal do Coro da Sé Catedral do Porto foi este ano constituído pelas partes IV, V e VI da Oratória de Natal , BWV 248, de Johann Sebastian Bach (1675-1750). Esta obra ou partes dela foram também apresentadas em outros concertos, por exemplo na Fundação Gulbenkian e na Casa da Música no Porto.

Por Manuel Correia Fernandes

A Oratória de Natal é constituída por seis cantatas, apresentadas integralmente no Natal de 2018 na Casa da Música, pela sua orquestra e um conjunto de quatro coros da cidade, sob a direção do maestro alemão Martin Lutz.

As seis cantatas recordam os vários momentos do nascimento de Jesus: A primeira parte, para o dia de Natal, descreve o Nascimento, a segunda, para o dia 26 de dezembro tem por tema a revelação do nascimento aos pastores; a terceira, para 27 de dezembro, centra-se na adoração dos pastores. O Coro da Sé apresentou este ano as três últimas cantatas: a quarta, escrita para o dia de Ano Novo, centra-se na Circuncisão de Jesus; a quinta, prevista para o domingo após o Ano Novo, lembra a vinda dos Magos; a sexta, para a Epifania, revela e medita a Adoração dos Magos. Nesta apresentação foram intérpretes: Alexandra Moura – Soprano; Joana Valente – Alto, Fernando Guimarães, Tenor e Job Tomé – Baixo. Com o Coro da Sé Catedral do Porto, a Orquestra do Atlântico, sob a direção de Tiago Ferreira. O concerto concluiu, como também é bom costume, com o canto do “Adeste Fideles”, tendo o maestro Tiago Ferreira apelado e orientado a plateia que enchia a Sé a entoar esse canto, atribuído ao Rei português D. João IV (1604-1656). Após a interpretação a solo pela assembleia, depois em polifonia e orquestra pelo coro, este acompanhou a versão atribuída a David Willcocks (1919-2015), que lhe dá um especial sentido festivo.

Estas três partes ou cantatas apresentadas sequencialmente ao longo de cerca de hora e meia, iniciam-se cada uma por um coro inicial, de construção muito elaborada e ricas de conteúdo musical e temático. Os textos adaptam formas inspiradas na liturgia tradicional da Igreja, em que se salientam as referências bíblicas e os valores messiânicos, lidos através da liturgia luterana em que se inseria J. S. Bach. Assim, a parte IV afirma “O Filho de Deus será o Salvador e o Redentor da terra”. A segunda cantata começa com o apelo “Cantemos em vossa honra , senhor… o mundo inteiro vos enaltece”, um coro de suprema elaboração das vozes e da orquestra. As mesmas dimensões se repetem no início da parte VI, para a festa da Epifania. Neste as palavras acentuam mais a narrativa persecutória do rei Herodes do que a dimensão buscadora dos Magos: “Quando os inimigos arrogantes fazem resfolegar o seu ódio, fazei que recorramos ao vosso poder e ai vosso auxílio”. É este sentido da atitude persecutória que o jogo vocal e instrumental procura traduzir através de uma complexa construção contrapontística. Se nos coros anteriores se valorizava a aclamação e o louvor (“Cantemos em vossa honra”), neste aparece-nos e conflito e a sua superação.

Os recitativos apresentados pelo tenor, segundo o modelo usado também pelo autor nas narrativas da Paixão (o nascimento, a vinda dos magos, a ordem de Herodes) são depois comentados em recitativos pelos solos de soprano, alto, tenor ou baixo, por vezes em diálogo com o coro, que assumem ora tom laudatório ou imprecatório (“Jesus é o meu pastor… está sempre diante de mim), ora de prece pessoal e interiorizada (“só o vosso nome permanecerá no meu coração”), ou de aclamação (“Quão resplandecente será o vosso brilho, Jesus”). Estes diálogos dos solistas são depois comentados pelos corais característicos da escrita da Bach (“para que possamos contemplar o vosso rosto e a vossa divina luz”; “recebei o meu espírito, o meu coração”). O coral final assume uma tonalidade triunfante (“Cristo destruiu aquilo que vos opunha… o lugar do género humano é junto de Deus”).

A construção destas cantatas torna-se assim um universo de evangelização e proclamação messiânica, curiosamente misturada com os conflitos humanos. A mística luterana da superação das lutas das paixões dos crentes através da inspiração divina, da prece (“quando cheio de angústia vos implorar, Senhor, ajudai-me”) e da confiança (O Redentor está comigo”)é presença constante na expressão musical de Bach, tal como acontece nas suas “Paixões”, e podíamos dizer também nas obras que escreveu segundo a liturgia latina, como o extraordinário e belíssimo “Magnificat”, nos seus solos contrastantes (“et exultavit spiritus meus”… “Deposuit potentes”).

Este conjunto das seis composições da Oratória de Natal constitui uma densa meditação sobre o sentido deste mistério da humanidade. A insuperável elaboração musical e dramática de Bach (as cantatas são quase sempre pequenos dramas teatrais em formas musicais) constitui sempre uma fonte de inspiração e apelo.

Por isso aqui devemos saudar a decisão do Coro da Sé de apresentar de novo (já foram em tempos apresentadas algumas partes), na catedral, esta obra no contexto natalício, a exemplo do que aconteceu também em outros locais “profanos”, onde a espiritualidade desta música pode ser uma presença inspiradora das mensagens de paz, equilíbrio humano, sentido ecológico, dinâmica de humanidade proclamada e procurada.

Parabéns também pela execução de grande dignidade que o maestro soube imprimir à realização deste concerto, aos solistas, ao coro e à orquestra, e ao diálogo criativo do conjunto.