A teoria do salário

Por Ernesto Campos

“Uma civilização transforma-se quando o trabalho de um operário moderno (…) se torna um valor.” André Malreaux

 

Nos dias revolucionários de abril de 1974, os trabalhadores de uma fábrica têxtil desencadearam uma greve, e um deles, que era amigo do patrão, encarregou-se de lhe explicar: “isto não tem nada de pessoal, isto é luta de classes”. O objetivo era a apropriação da empresa transformando-a em capital coletivo, cujos lucros substituiriam o salário, anulando, também, a diferença de classes sociais entre trabalhadores e capitalistas. Este movimento de luta de classes não vingou, como se sabe da história recente, e persiste a problemática relação capital/trabalho.

O salário, com efei1to, envolve uma contradição conflitual de fundo: para o empregador que o paga é visto como um custo de produção, para o trabalhador que o recebe é um rendimento, porventura o único da sua vida, insuficiente para as suas necessidades.

Pode pensar-se numa espécie de salário natural que corresponderia às necessidades de subsistência do trabalhador, determinada pelo mercado e a lei da oferta e da procura; uma espécie de norma referencial e acéfala. Com o advento do capitalismo, o trabalho  é visto como qualquer mercadoria e o salário um custo de produção.

Sendo o trabalho parte integrante da condição humana,  é algo mais que mercadoria sujeita às leis do mercado; e a retribuição desta participação humana deve exprimir mais que a produtividade e a utilidade, quanto o produto tem de humanizado, o quantum humano Daí a prioridade intrínseca do trabalho sobre o capital, sem prejuízo da sua complementaridade. Di-lo S. João Paulo II na encíclica Laborem exercens  (293, 294) “Este princípio diz respeito diretamente ao próprio processo de produção no qual o trabalho é sempre causa eficiente primária, enquanto que o “capital”, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas instrumento, ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que resulta de toda a experiência histórica do homem” e “ pertence ao património estável da doutrina da Igreja.”

O liberalismo primário considerava o salário como preço do trabalho, que seria adequado desde que fosse contratado entre as partes (sendo o assalariado geralmente a parte mais fraca), sem ter em conta qualquer salário familiar ou social. A tendência da atualidade é condicionar por via legal o funcionamento anárquico do mercado quanto ao trabalho, estabelecer salários mínimos e impor ou regular retribuições indiretas como abonos de família, salário doméstico, etc. Trata-se de um conceito de trabalho radicalmente novo: salário não é preço porque trabalho não é mercadoria; deve, além das necessidades do trabalhador e sua família, subordinar-se, não ao mercado, mas ao bem comum, isto é, à justa repartição da riqueza. São progressos resultantes da luta sindical dos séculos XIX e XX, e que estão, aliás, na linha da doutrina social da Igreja que sempre se preocupou com o justo salário e o papel do trabalhador como colaborador da empresa, comunidade de trabalho. A propósito desta colaboração e da contratação coletiva que os sindicatos defendem já a encíclica Quadragesimo Anno (65) de Pio XI, em 1931, define contrato de trabalho e de sociedade: Deste modo, os trabalhadores “são considerados “sócios no domínio ou na gerência ou compartilham os lucros”.

Uma tal doutrina traduz o reconhecimento do ethos do trabalho e a confirmação do eixo axiológico da cultura europeia.