Festas e feridas do Natal

Foto: Vatican News

Há cada vez mais gente a dizer que o Natal, celebrado mais intensamente nestes dias, é das épocas do ano em que menos se sente bem. Mesmo que isso ainda não configure a percepção da maioria das pessoas, essa realidade não é de admirar, nem sequer de se lamentar linearmente.

Por Alexandre Freire Duarte 

Numa sociedade em que o “sentir-se bem” passou a identificar-se irrestritamente com o “estar bem”, o Natal tornou-se um ótimo denunciador da ilusão de tal assimilação. Deveras, o desconforto dele derivado, e porventura vivido inclusivamente por nós cristãos, desmascara o nosso afastamento, quer da verdade acerca de nós, quer daquele exigente amor autêntico que só ele dá sentido, valor e liberdade à nossa existência.

Habituados que estamos aos slogans de todos os saberes feitos pop, sentimo-nos agastados com o tempo de Natal também porque ele, ainda que convertido mais num festival do que numa festa, nos desperta para um dos mais valiosos, e igualmente mais desestimados, dons comunicados pela tradição judaico-cristã: a consciência moral. Não a light, que se lamenta por não sermos apenas animais, mas a genuinamente consistente, que nos fere ao acenar para o facto de que não nos podemos satisfazer com o sermos apenas isso. Aquela que, pelo menos na altura do Natal, se faz ouvir de uma forma um pouco mais definida, provocando um “sentirmo-nos mal” que, afinal e face ao supramencionado afastamento, é um abrir de possibilidades para que possamos “estar bem” no amor ego-desapropriante. Mas isto apenas se ousarmos admitir que, se ignorarmos esta consciência e dissermos que “estamos bem”, estaremos sempre a empregar, como tempo verbal, o “presente mais-que-enganador”.

Acontece que, provavelmente, já não teremos força para isso. Andámos há tanto tempo a trair-nos, querendo cloroformizar o que em nós suspira pela nossa humanização, que já nem sentimos o que quer que seja quando perdemos o nosso maior bem. Esse bem que nunca será alcançado pelo absolutizarmos mais e melhores escolas, mais e melhores férias, mais e melhores empregos, mais e melhor saúde, mais e melhor vida, mas somente por aquilo que, no fundo, deveríamos todos celebrar por ocasião do Natal. A saber: a manifestação, em Jesus de Nazaré, daquele único ser humano a quem podemos, com toda a propriedade, apelidar de “Homem”. Aquele que é a norma e a meta da nossa humanidade amorizada e a quem, se o reduzirmos a um mero ser humano (por mais extraordinário que o queiramos imaginar), estaremos, diante das suas pretensões e comportamentos historicamente verificáveis, a estimar injusta e indevidamente que foi um charlatão, ou, então, um alienado.

A constatação de que, geralmente, nem nos damos conta disto que acabou de ser mencionado, nem que tal redução é uma dolorosa ofensa para todos os verdadeiros cristãos, é outro sinal que andamos pelo mundo da inconsciência (também moral). A que nos leva a estimar que o único e verdadeiro Deus-Amor precisa de ser negado para sermos genuinamente humanos e, desse modo, podermos substituir a civilidade pela inanidade, o bem pelos bens e, no que é sempre a lógica final de tal convicção, o altruísmo centrífugo pelo egoísmo centrípeto. Aqui está, porventura, a razão-capital de o Natal não apenas nos incomodar, mas acabar por ser manipulado, renomeado, silenciado, detestado e até perseguido.

Apesar de tudo e até contra tudo, ainda bem que é assim: face ao horizonte em que tendemos a viver habitualmente, trata-se de mais um sinal do amor e da verdade do sempre natal Jesus.