Embora não tenha saído para as salas de cinema, antes para uma plataforma da Internet, “O Irlandês” é outro dos filmes de 2019 que certamente ficará para a história. Ainda que a falta de naturalidade dos efeitos especiais de des-evelhecimento das personagens não deixe de se fazer notar, tudo nele é de uma inegável mestria: dos desempenhos absorventes, à agudeza dos diálogos, passando pelos jogos de cores flutuantes entre o definido e o enublado (perfeitamente em harmonia com os dos silêncios dilacerantes e os do humor dilatado pela crueza de uma violência jamais romantizada).
Por Alexandre Freire Duarte
Talvez por ter sido realizado por alguém provindo de uma matriz católica, este filme, desde uma leitura teológica, é de uma densidade ímpar. Não serão, de facto, os cristãos, sobre os quais incumbe a missão de melhor conhecerem (e darem a conhecer) a Deus-Amor, aqueles que, amando e desamando (tantas vezes em simultâneo), melhor conhecem a gravidade do desamor e as exigências do amor?
Olhando para esta épica obra (que dificilmente não será, um dia, tida como “prima”), é impossível não ver que ela é um inclemente retrato de tantas das nossas vidas coevas (cristãs ou não). Claro que a brutalidade cruenta que nela vemos não se encontra em muitos de nós, mas a incruenta, essa, e por mais que a tentemos disfarçar, não nos é desconhecida. Eis, em nós e neste filme, a murmuração que mata; a ânsia de visibilidade que esmaga quem não nos bajula; as ameaças físicas e psicológicas àqueles que não seguem as nossas bitolas; as (falsas) amizades construídas para que nos promovam ou nos sirvam; o uso despótico do poder que não cria comunidade, apenas edifica inimizade; etc.
E tudo isto para quê? E a que preço? Merecerá investirmos narcisisticamente a nossa vida no que – com o tempo (e por mais que nos auto-justifiquemos a ponto de acharmos convictamente que tudo foi um sacrifico “importante” e até “necessário” na busca do “bem”) – apenas ficará coberto de, ou até reduzido ao “pó”, por ir contra os critérios de amor de um Jesus que veio “virar o mundo do avesso”? Virá-lo, sim, mas não através de uma qualquer resistência (que apenas fortaleceria os poderes mundanos), mas através de uma persistência amorosa desarmada patenteada na Sua contínua Auto-doação absolutamente livre (que, em derradeira análise, move quer a totalidade do Universo, quer a mais ínfima partícula elementar).
Este filme é um hino para vivermos as nossas vidas de tal modo que, no Natal das mesmas, sejamos capazes de encarar a morte, não como se esta fosse uma qualquer alarmante “abortadeira” que nos tirará a vida, mas como aquela amante “parteira” que nos colocará nas mãos do Pai. Não nos viciemos, portanto, nas nossas entregas, ego-enfatuantes, a submundos sem-sentido que, só existindo para sub-existirem, não logram criar nada de perene, antes nos apartam do que nos permitiria sobre-existir: a família; a oração; o amor; o perdão; Deus.
(filme “O Irlandês”, USA, 2019; dirigido por Martin Scorsese, com Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci e Anna Paquin)