Um poema de Pascoaes para Sophia

Por M. Correia Fernandes

Datado de 13 de abril de 1950, em São João de Gatão (Amarante), onde então residia, Teixeira de Pascoaes (1877-1952), por certo por ocasião ou em memória de alguma visita que Sophia lhe tenha feito, dedicou-lhe um poema de seu próprio punho e letra, que aqui transcrevemos:

A Sofia Breyner

Ó Nereide a cantar

Ao som da lira!

Entre as ondas e as nuvens!

Atravez dos teus versos

O mar palpita

E todos os reflexos

Dosol nas vagas

Em que fulgura

A origem mitica da vida.

Deusa oceanica

Liquida estatua,

Fada em nuances

De luz,

E transparencias ondulantes…

E nos deslumbra, e foge!

Sempre a fugir e a deslumbrar-nos!

Sempre a fugir, e a deslumbrar-nos!

Sempre, deante de nos

E no horisonte

Só agua e céu…

 

Pascoaes tinha a esta data, 73 anos. Conhecia obviamente a poesia de Sophia. Por este texto se vê que sustentava por ela evidente admiração, bem como o conhecimento da estrutra, temática e inspiração dos seus escritos. Sophia percorria os seus 30 anos. Nesse ano tinha-se instalado com a família na Travessa das Mónicas, à Graça, em Lisboa, da qual afirmou: “Gosto muito dela. Quando aqui entrei cantei o «Magnificat». É uma casa muito bonita que eu embelezei”. Nesse ano de 1950 Sophia publicava “Coral”, poemas inspirados pela natureza e pelo mar. Talvez Sophia não tenha merecido, ou querido, a presença do seu nome nas variadas placas que que num recanto do solar de Gatão, onde viveu Pascoaes, registam alguns dos que ali o visitaram, como os de Unamuno ou Leonardo Coimbra.

Deste poema importará reter um conjunto de conceitos que traduzem uma visão pessoal da poesia de Sophia:

Na memória do epíteto Nereide, que ele sente “a cantar” personifica nela, Sophia poeta, a imagem das filhas de Nereu, o deus do mar, com quem partilhava as belezas e as dinâmicas do oceano. Sophia surge assim como a poeta que canta o mar. Sente-se que terá sido o conhecimento do volume “Coral” que inspirou a Pascoaes este epíteto.

“Entre as ondas e as nuvens” sugere o sentido marítimo e ascensional que Pascoaes, homem das serranias do Marão, míticas ou mitificadas, sente na sua poesia.

E parte do mar e da luz para o seu valor simbólico: “a origem mítica da vida”.

Depois passa das nereidas à estátua, concebida como se fosse viva na sua liquidez perene, ou como fada de luz e transparências ondulantes, que se afirma diante de nós, edificando mum horizonte e água e céu. Evidencia assim Pascoaes a presença abrangente e conspícua do mar na poesia de Sophia.

Pode acontecer que Pascoaes tenha lido em Coral estas ou outras palavras inspiradoras:

Luminosos os dias abolidos
Quando o meio-dia inclinava a sombra das colunas
E o azul do céu tomava em si a terra
Apaziguada no murmúrio
Das folhagens e dos deuses.

 

Seja o que for que tenha lido, ou sentido na figura jovem e materna de Sophia, Teixeira de Pascoaes soube ver nas serranias a presença inspiradora do profundo sentido humanista da poesia que dela ia emergindo. Que bem pode ser também inspiradora para os nossos dias em que os valores da natureza se vão afirmando, não onde ela devia afirmar-se presente e inspiradora, mas onde a vamos destruindo, mandando arrancar ou cortar as árvores que nos fazem falta..Que diria o Pascoaes do Marão quando lhe revelassem aos 73 anos que uma empresa promove o corte de sobreiros e as orientações governamentais, e práticas municipas, ignorando o ambiente, mandam cortar as árvores que nos dão folhagem, sombra e vida?

Talvez Sophia lhe pudesse inspirar poemas como este sobre as serranias e arvoresdos do Marão:

Amo-te, desde a fonte piedosa

Que dos teus flancos mana, duma casta

E fresca transparência religiosa.

Uma observação linguística: em tempos de discussões sobre acordo ortográfico, veja-se como Pascoaes, cinco anos depois do acordo de 1945, ainda se olvida por vezes das novas normas, não acentuando as exdrúxulas (mitica, transparencias,oceanica e agua) ou em formas como “deante” ou “horisonte”.

É bom escrever segundo as regras, mas o essencial é o pensamento, o sentimento e a generosidade intelectual. “Quando é alto e nobre o pensamento, súbdita a frase o busca e o escravo ritmo o serve”, como diz Ricardo Reis.