Editorial: Erguei-vos e levantai a cabeça…

Pode certamente ser motivo de meditação a semelhança que podemos discernir entre a palavra profética de Isaías, cap. 2, a as palavras igualmente proféticas do Papa Francisco pronunciadas na sua visita ao Japão.

Por M. Correia Fernandes

Diz o profeta que os tempos messiânicos hão de caracterizar-se pela transformação das espadas em relhas de arado e as lanças em foices, e que não se levantará nação contra nação nem mais se hão de preparar para a guerra. Esta visão metafórica de um ideal proposto no séc. VIII antes de Cristo tem uma clara projeção igualmente simbólica e profética no ideal proposto neste século XXI. Converter as espadas em arados significa promover o desenvolvimento das terras, o equilíbrio da natureza, os princípios ecológicos dos dias de hoje. Transformar as lanças em foices falará da valorização do trabalho criativo, do equilíbrio alimentar das populações, das culturas fundadas no aproveitamento equilibrado da natureza, na gestão harmónica da biodiversidade. É pois uma visão também ecológica dos tempos modernos.

Por outro lado, o inciso seguinte, “não mais se levantará nação contra nação”, é uma antecipação das propostas da ONU para, em estados de tensão, dissuadir os conflitos e as guerras.

Já nos nossos dias fomos e somos confrontados com agressões de todo inadmissíveis, nascidas de países tidos por civilizados, que visaram e visam destruir governos e gentes de outros países ou outros povos. Lembramos a guerra do Kwait, a guerra do Iraque, as guerras dos Balcãs, da Etiópia e da Eritreia, do Sudão e tantos outros focos de levantamento de povo contra povo e depopulações contra populações. São ainda mais vastos os conflitos dentro dos mesmos países, expressões bélicas de interesses económicos que esquecem as populações. As guerras hoje nascem das ânsias de domínio comercial e de controlo das fontes de produção.

Regressemos à simbologia das palavras de Isaías. O Papa Francisco, na sua encíclica “Laudato Sì”, invocando “a sabedoria das narrações bíblicas”, escreve: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral” (n. 13), acentuando o compromisso humano com a natureza. Por outro lado, as dimensões do “paradigma tecnocrático” conduzem a que o homem actue como se “tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação”, condicionando a vida das pessoas e as dinâmicas da sociedade, no quadro de um “antropocentrismo egoísta” que conduz a um “relativismo comportamental”. A mensagem profética vai de encontro à proposta de Francisco de valorizar e defender o trabalho humano como fonte de equilíbrio global da sociedade. É este também o sentido de uma “ecologia integral”, biológica, cultural, da vida quotidiana e do bem comum, intergeracional, de uma “política e economia em diálogo para a plenitude humana”. Esta visão completa e atualiza as palavras do profeta.

Por outro lado, as recentes mensagens de Francisco na visita ao Japão parecem repetir em novo contexto as palavras do profeta: “Que nunca mais, na história da humanidade, volte a acontecer a destruição gerada pelas bombas atómicas”. A proposta de Francisco adquire uma expressão atual: que os países e as organizações mundiais promovam “um processo político e institucional capaz de criar um consenso e uma ação internacional mais amplos” na promoção da dignidade da pessoa e da paz, apontando os reais critérios de civilização: “Sabemos que, em última análise, o nível de civilização duma nação ou dum povo não se mede pelo seu poder económico, mas pela atenção que dedica aos necessitados e também pela capacidade de se tornarem fecundos e promotores de vida.”

Todos estes caminhos podem conduzir ao sentido da visão apocalíptica das palavras de Jesus, num contexto de final dos tempos em que “há de erguer-se povo contra povo e reino contra reino”, ou em que “as forças celestes serão abaladas”: “Quando estas coisas começarem a acontecer, erguei-vos (ou “cobrai ânimo” noutra tradução) e levantai a cabeça, porque a vossa redenção está próxima”.

Eis um diálogo entre o presente e o passado, ou uma dinâmica da intemporalidade da mensagem.