Noticiou a Comunicação Social que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura) – a mesma entidade que define e proclama os sítios chamados “Património da Humanidade”, como o Centro do Porto ou o Bom Jesus de Braga – oficializou como Dia Mundial da Língua Portuguesa o dia 5 de maio.
Por M. Correia Fernandes
Não foi revelado o motivo da escolha do dia. Cinco de maio é o Dia Nacional do México, mas não consta que para Portugal seja data de referência. Mas pode passar a ser. A oficialização foi consumada na presença do Primeiro Ministro António Costa, da Ministra da Cultura, Graça Fonseca, da Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, Berta Nunes e do Embaixador de Portugal na UNESCO, António Sampaio da Nóvoa (candidato a Presidente da República em 2016).
O significado desta oficialização foi exaltado como manifestação e contribuição para o prestígio da língua portuguesa e sua afirmação no mundo, a sua consolidação nos países que a guardam como língua oficial e para ampliação dos 200 milhões (dizem) de falantes.
Levantam-se vários problemas: Quem vai comemorar o dia? Quem vai assumir a responsabilidade da comemoração? Quem se vai sentir subjetivamente comemorado? Mais um dia de qualquer coisa a propósito de coisa nenhuma? Não faltarão departamentos governamentais e para-governamentais a evidenciarem o acontecimento e a evidenciarem-se com o acontecimento.
Que língua portuguesa?
Questão mais importante é saber que língua portuguesa é que se assume como objeto da comemoração? A língua dos nossos escritores, os que estão nas suas raízes, como os autores dos cancioneiros medievais, os clássicos que a solidificaram, como Gil Vicente ou Camões, ou António Vieira, o “Imperador da Língua Portuguesa”, os mestres do século XIX como Camilo ou Eça de Queiroz, ou os nossos contemporâneos como Agustina, ou Sophia, ou Jorge de Sena, ou Mário Cláudio? Seria bonito se assim fosse.
Ou a língua que ouvimos na nossa comunicação social, cheia de “não é?”, de “ok”, de “naquilo que é”, de “quer dizer”, e tantas outras formas da coloquialidade que introduzem devagarinho mais ou menos deformidades de linguagem? Ou a língua das mensagens de telemóvel, mal escritas e cheias de abreviaturas?
Será um misto de tudo isto?
Que papel irá desempenhar neste universo a diatribe, flutuante entre a sensatez e a insensatez, sobre do acordo ortográfico? Ou o uso destemperado dos vocábulos estrangeiros contra os quais ninguém protesta mas que poluem mais que as centrais aa carvão ou os veículos a diesel? A língua portuguesa dos nossos anúncios, comerciais ou dos programas de concertos “rock”? Ou a linguagem estranha das festas “Halloween” do “Black Friday” para os melhores descontos? Ou um anunciado “Fair Saturday” ou evento de “leaders in action”’? Ou a proliferação dos “Pay shop”, que alguém mais sensato, embora raro, tem vindo a alterar para “Paga aqui”?
Mas o Dia da Língua Portuguesa poderia ser oportunidade para campanhas de eliminação de toda esta ganga de anglicismos americanizados, curiosamente dirigidos maioritariamente a falantes portugueses. Uma língua assim conspurcada merece ter um Dia próprio?
Vejamos: hoje não há página de diário que não ostente uma caterva ou alcateia de estrangeirismos. A caminhada por uma qualquer rua de uma qualquer cidade é um deparar constante com os velhos anglicismos inconscientemente assumidos. Nos nomes dos cafés ou restaurantes abundam os nomenclaturas decalcadas sobre modelos americanos.
Como será possível expurgar da língua portuguesa estas gangas, que se pegam como os peixes pegadores que censurava António Vieira. Não falo dos pegadores dos departamentos governamentais a que se referia Vieira, os que se “deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores”. Falo mais modestamente das más palavras e da má linguagem que se pega aos deslumbramentos provincianos das modas anglo-saxónicas.
Para ficarmos todos bem na fotografia, recordemos palavras dos nossos maiores, que ainda não tinham Shakespeare mas ombreavam com Cervantes ou Lope de Vega:
Floresça, fale, cante, oiça-se e viva
a portuguesa língua, e já onde for,
senhora vá de si, soberba e altiva!
Se até aqui esteve baixa e sem louvor,
culpa é dos que a mal exercitaram,
esquecimento nosso, e desamor!
António Ferreira (1528-1569)
Este vitupério bem pode ser o dos nossos dias: a deterioração ou desgovernação do português culpa é dos que mal a exercitam, não já dos que mal a exercitaram…
E já gora, deixemo-nos conduzir pelo poeta brasileiro Olavo Bilac (1865-1918), nesta conhecida e bela exaltação:
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…
Amote assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Pois nos tempos que correm, parece que estamos mais na sepultura que no esplendor. E sentimo-nos impercetivelmente embrulhados na ganga escura, que vela entre cascalhos na busca do “arroio da saudade e da ternura”.
Sabemos que as línguas são organismos vivos, que se transformam e se desenvolvem. Mas que também acolhem fungos, micro-organismos perniciosos, cancros obscuros e neoplasias imperceptíveis. Assim navegamos nós, na expectativa do Dia da Língua Portuguesa.