S. Bartolomeu dos Mártires visitou a cidade do Porto em 1576

Entre a abundância de escritos que deram conta do ato oficial da canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires, poucos se terão dado conte de que o Arcebispo também visitou o Porto. Acolhemos este relato.

Por Luís Cabral, Investigador e antigo Diretor da Biblioteca Pública Municipal do Porto

Vai o Arcebispo à cidade do Porto…

Na altura em que Dom Frei Bartolomeu dos Mártires (Lisboa, 3 de Maio de 1514 – Viana do Castelo, 16 de Julho de 1590) é canonizado, a Voz Portucalense lembra o “Arcebispo Santo”, como foi chamado ainda em vida. Fá-lo através da pena de Frei Luís de Sousa (1555- 1632), mestre da Língua Portuguesa, cronista da Ordem de São Domingos, dos Anais de el-Rei D. João III e autor da Vida de D. Frei Bertolameu dos Mártires, que teve  a 1ª edição em 1619. Servimo-nos aqui da lição de Aníbal Pinto de Castro e Gladstone Chaves de Melo, Lisboa: INCM, 1984, p.475-477. Os capítulos IX – XI tratam também da permanência do Arcebispo no Porto.

D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, vem ao Porto, em maio de 1576, para participar no capítulo provincial das sua Ordem, no Convento de São Domingos.  Procurando chegar com a maior discrição, é, no entanto, recebido com “pompa e grande solenidade”, pelo Bispo e Cabido e pelos religiosos, fidalgos, gente nobre e povo, a que não faltou o apoio do Senado da Câmara, sendo “tamanho o acompanhamento, que não pudera ser maior se entrara a pessoa d’el-Rei D. Sebastião”, no dizer do cronista. Ficou célebre a sua pregação durante esses dias.

Da segunda vez que o Padre Frei Estêvão Leitão governou a Religião de nosso (1) Padre S. Domingos neste Reino, com título e cargo de provincial, veio a celebrar capítulo intermédio, cumpridos dous anos despois de sua eleição, polo mês de Maio de 1576. E foi nomeado pera ele o nosso convento da cidade do Porto.

A principal cousa que o Provincial e difinidores acordaram na primeira junta que fizeram foi despachar dous padres dos mais graves do capítulo a Braga, a visitar o Arcebispo, e pedir-lhe em nome dele que, pois se celebrava em sua província, quisesse honrá-lo e autorizá-lo com sua presença, e lançar-lhe üa bênção, lembrando-se que também era membro da mesma Relegião.

Estimou o Arcebispo a visita quanto era razão, e aceitou a jornada com grande gosto e alvoroço. E fingindo-se em sua imaginação um pobre frade particular, forro do cativeiro dos cargos e dignidade, assi se alegrava, como se já se vira naquela antiga liberdade que um tempo lograra e por quem sua alma, com saudade contínua, suspirava, correr a chamado de seus prelados. Tudo foi um, ser convidado e caminhar ou, por melhor dizer, voar. Determinou entrar de noite no Porto por fogir de estrondos e cerimónias de recebimentos; e assi mediu as jornadas, que não pudesse chegar de dia. Mas, como o caminho é tão curto, essa mesma traça foi meio de ser recebido com mais pompa e maior solenidade. Porque o mesmo alvoroço que ele trazia pera ver toda sua Religião junta tinha ela pera se lograr da vista de quem tanto a ilustrava com suas grandes virtudes. E não era menos o desejo que toda a nobreza do Porto tinha de o ver dentro daqueles muros.

Assi, lançaram boa conta ao tempo e horas e, quando o Arcebispo cuidou que se podia meter no convento sem ser visto de ninguém, achou-se cercado de üa comprida procissão dos seus frades, e logo do Bispo e cabido da sé, que não quis faltar em ajudar os religiosos a festejar o gosto desta entrada. Era o Bispo D. Aires da Silva (2), primo com-irmão do regedor da Casa da Suplicação, Lourenço da Silva, por sangue e descendência particular afeiçoado a esta Religião.

Acudiram juntamente todos os fidalgos e gente nobre da cidade, com que foi tanto o rumor, saindo o povo todo ao exemplo dos maiores, e tamanho o acompanhamento, que não pudera ser maior se entrara a pessoa d’el-Rei D. Sebastião.

Ajudaram avisadamente os vereadores, mandando pôr luminárias por todas as janelas e fazendo vir muitas tochas que fizeram a entrada em todo bem triunfada. Nesta pompa foi levado o Arcebispo até o convento, onde, chegando, houve entre todos grandes comprimentos e cortesias, porque o Bispo pretendia que a ele devia tal hóspede, e queria levá-lo à força pera sua casa. E o Arcebispo nenhüa cousa queria menos, como quem tinha pola melhor parte desta jornada ver-se só entre os seus frades e esquecer-se uns dias de arcebispo.

Em fim se apartaram com mostras de muito sentimento de um, e agradecimento do outro, e grande amor de ambos, e de todos os mais, eclesiásticos e seculares, que não se fartavam de venerar o Arcebispo, alegrando-se de ver em sua casa üa coluna da Igreja de quem tantas maravilhas ouviam de letras, de governo, e de santidade.

Foi o Arcebispo aposentado à sua arte e com muito gosto seu no dormitório, em üa cela como qualquer dos capitulares, ainda que mais composta e paramentada do que ele quisera.

Aqui lhe pediram logo o Provincial e definidores que, pera em tudo favorecer e honrar o capítulo, quisesse pregar um dia. Escusou-se, com razões de humilde e cortesão, que seria demasiada confiança de um velho já acabado atrever-se a abrir a boca diante de tão grave congregação, onde sabia que vinham pregadores de grande fama e grandes letras; que bem o desculpava, quando quisera dar-lhes gosto, haver tantos anos que outros livros não revolvia senão autos e processos compostos por escrivães e oficiais de justiça.

Mas, se se escusou da pregação por então, não o fez assi em todos os mais autos de Religião, nos quais deu memorável exemplo acudindo, sem faltar nunca, a todas as comunidades de coro, refeitório e conclusões, com tanta pontualidade como o mais robusto e mais obrigado religioso do convento. E o que mais devemos envejar, os frades, é o gosto e alegria e devação com que o fazia; que na verdade Deus não se quer servido à força; tem condição mui afidalgada e mui de quem é. Serviço arrastado e, como dizem, por matar geira, nem a um rústico agrada, quanto mais a um Senhor que a primeira cousa que de nós quer é o coração: Fili praebe cor tuum [Filho, dá o teu coração].

 

 

 

 

Edifício que substituiu o Convento de S. Domingos, no largo do mesmo nome, no final da rua das Flores.