O Cinema visto pela Teologia (4): o filme “Dor e glória”

A revista “Time” considerou, há dias, “Dor e glória” como o melhor filme de 2019. O exagero presente em tal apreciação não é excessivo. Dotado de uma primorosa montagem, de um notável magnetismo entre as personagens e de uma paleta de cores que é demasiado bela para não deixar entrever a Deus, este filme é, também pelos seus fios soltos, um admirável artefacto sensual de desafio emocional.

Por Alexandre Freire Duarte

Nomeadamente nos maneirismos do protagonista, na escolha de alguns cenários e indumentárias e nas sucessivas alusões a outros títulos do seu realizador, esta obra é (falsamente) autobiográfica. Mas também é assim que, desde uma leitura teológica, o nó de todos os problemas da sua personagem principal é revelado: uma autocontemplação ego-afagante. Aquela figura, com efeito, não está faminta, mas desgastada, desejando esterilmente reacender a criatividade a partir das suas memórias cheias de dor e de glória, ou melhor, de dor derivada da vanglória.

De facto, mais do que nas maleitas médicas próprias da velhice, os ditos problemas têm a sua raiz em cisões espirituais derivadas do autoendeusamento. Cisões essas que surgem mormente plasmadas, seja (de forma estranhamente franco) no homoerotismo (neste caso automutilante, pois destrutor de um amor que não se confunde com as emoções), seja no previsível contraste insanado entre uma inocente ruralidade sabiamente sadia e uma doentia urbanidade ignorantemente ingénua.

Nenhum “cabelo branco” é-nos dado por Deus, mas pela nossa falta de consonância com Ele. Neste filme, tal desarmonia brota de uma vivência traumática (símbolo da perda da sintonia com a verdade que perpassa a realidade) que bloqueia o amadurecimento espiritual e conduz a uma mundividência pagã, ou, pelo menos, humanista mas descristianizada (o que, sendo um contrassenso, reforça tal bloqueio). Todavia, é o próprio filme que acena para o que poderia ajudar o protagonista a (re)sintonizar-se com a Verdade: a religião (no seu papel, recusado a dado momento, de educadora de uma heteronomia que conduz à autonomia filial pelo discipulado); a devoção familiar; a Cruz (intimamente ligada aos sacrifícios de amor para se ter uma vida melhor que, porém, leva a um abandonar do que havia fundamentado aquelas disposições e, assim, ao minar destoutra); o desvelo; a oração; e o perdão.

De qualquer modo, quando desarmado de si mesmo, a honestidade da personagem principal vem ao de cima, e afirma, por um lado, que acredita em Deus quando precisa (cada vez mais) d’Ele, e, por outro lado e de modo falsamente ambivalente (pois dito como que desejando insinuar que está a querer enganar-nos), que não acredita n’Ele nas outras ocasiões. Eis o que entreabre a porta à verdadeira glória que que vem daquela dor que arreda as ilusões e reconecta com uma realidade que se manifesta, contra o que poderia ser desejado, dotada de um substancial sentido provindo de fora de si mesma (pois sustentado por Deus).

(“Dor e Gloria”, Espanha, 2019; dirigido por Pedro Almodóvar, com Antonio Banderas, Penélope Cruz e Asier Etxeandia)