Os malefícios da burocracia

“O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”

Mc 2, 27

Sem burocracia, o caso chocante da criança recentemente  abandonada num contentar de lixo teria tido outro acompanhamento.

Por Ernesto Campos

O simples bom senso levaria a criança resgatada para um hospital e conduziria a mãe, logo encontrada, para junto dela a fim de a alimentar  e cuidar. Em vez disso, prevaleceu a lógica burocrática: o bebé lá foi para a maternidade e agora não sabem o que lhe hão de fazer, quqndo a mais simples sensatez procuraria  com urgência a família biológica para lho entregar. Quanto à mãe, que  também precisará de cuidados  de saúde, meteram-na na cadeia e, porventura, vão condená-la sob a salomónica e rebuscada acusação de “homicídio agravado na  forma tentada”; como se isso fosse justiça.

A psicologia já descobriu que no primeiro semestre de vida a criança depende de cuidador numa situação de simbiose fisiológica para satisfação das necessidades básicas de alimentação, ar, calor, movimento e sono; mas em breve surge o primeiro sorriso cono manifestação social que a mãe capta como se fosse o florescer da alma, abrindo-se para uma simbiose afetiva. São as manifestações fundadoras do edifício desenvolvimental em que a mãe tem um importantíssimo papel. A psicologia confirma o que o senso comum espontaneamente intui, mas o aparelho burocrático cego e torpe não quer saber disso.

Certo é que a burocracia existe para assegurar a eficiência da administração pública, garantindo direitos, dando o seu a seu dono. Fator de progresso, pois, e instrumento de racionalização das relações de direito público e privado. A literatura, porém, seja de ficção ou descritiva de situações de natureza política totalitária ou mesmo em estados ditos de direito, regista numerosos exemplos de perversidades burocráticas. Basta lembrar Kafka e Dostoievsky e citar deste que “se o juiz fosse justo talvez o criminoso não fosse culpado”, ou até o Corão ao referir que ”a justiça é parente da piedade”. Aliás, desde o princípio, a palavra burocracia foi conotada depreciativamente como impessoal e abuso de poder dos funcionários que a aplicam abusivamente em nome da democracia e da igualdade. E não faltam nos escritos de João Paulo II, nomeadamente na encíclica Centesims Annus e noutros documentos da doutrina social da Igreja, referências ao aparelho do Estado mais guiado, às vezes, “por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas”.

A grande contribuição do cristianismo para a humanização da sociedade dos homens submetendo o sábado ao homem e não o contrário, ficou, afinal, letra morta privilegiando a lei, que, querendo ser igual ara todos, castiga mais os que, já excluídos dos benefícios do sistema, são vítimas ainda dos seus malefícios.

O presidente da República apelou à compreensão em relação a este caso. Necessário é que tal compreensão se assuma expressamente como princípio formal de equilíbrio nas relações entre as pessoas (e a sua circunstância) e a ação pública: por respeito e para promoção daquelas sem os possíveis abusos da segunda. “A corrupção das coisas ótimas é péssima”.