Cantata “Cristo Rei”, uma obra grandiosa e emblemática

Por M. Correia  Fernandes

Três de novembro de 2019. Fundação Calouste Gulbenkian. À  entrada estava escrito: Cantata Cristo Rei: lotação esgotada. Efetivamente foram cerca de 1200 pessoas que encheram o grande auditório da Fundação, para participarem na apresentação, pela terceira vez, da Cantata “Cristo Rei”, com texto de D. Carlos Azevedo e música do Cónego  António Ferreira dos Santos, ambos membros da Diocese do Porto.

Presentes o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, o Bispo de Setúbal, D. José Ornelas de Carvalho, a Presidente do Conselho de Administração, Isabel Mota, o Secretário de Estado da Educação, João Costa, além de personalidades ligadas à diocese de Setúbal.

Foi de facto a dignificação desta obra “magnífica” (no dizer do Bispo de Setúbal), por ter sido apresentada num ambiente nobre e em excelentes condições acústicas e numa interpretação digna de figurar nos registos da Fundação.

A apresentação, a cargo de solistas (a soprano Carla Simões, dois tenores, Pedro Rodrigues e Marco Alves dos Santos e o barítono Armando Possante), uma associação de 11 coros (cerca de três centenas e meia de vozes) e a orquestra  Sinfonietta de Lisboa, com direção de  Vasco Pierce de Azevedo, foi uma iniciativa da Diocese de Setúbal, integrada comemoração dos 60 anos do monumento a Cristo Rei.

A obra, que havia sido composta para celebrar os 50 anos do monumento a Cristo Rei, já tinha estado programada para ser apresentada em 2010. O concerto então previsto acabou por não se realizar nessa data, e a obra permaneceu inédita. Saúda-se vivamente a decisão da diocese de Setúbal  de promover agora a sua apresentação, ocorrida em três momentos – Setúbal, Fátima e agora na Gulbenkian – e a disponibilidade dos numerosos intérpretes pela decisão e pelo esforço de todos para a sua efetivação na celebração pela diocese dos 60 anos do monumento, ocorrida em 18 de maio deste ano.

A obra e o espírito

Na altura, em 2010, Voz Portucalense manteve um contacto com o Cónego António Ferreira dos Santos, no contexto da apresentação em Portugal do seu “Requiem à memória do Infante D. Henrique”, que no outono de 2009 foi apresentado na Alemanha, cantado em português por cantores locais, como grande momento de encerramento do Festival de Música de Wiesbaden, capital do estado de Hessen, pela orquestra, coro e solistas alemães, dirigidos por Martin Lutz. A obra voltou a ser apresentada em Fátima, em 2010, contando com a presença do autor e do Bispo António Marto. Na mesma altura foi também apresentada no Porto (igreja da Lapa), na igreja do Candal em Gaia, e em Famalicão. Segundo testemunho do autor, a apresentação da obra na Alemanha foi iniciativa do Festival de Wiesbaden e mereceu um acolhimento caloroso de uma plateia com uma forte cultura e tradição musical.

Foi nesse contexto de preparação para a atual apresentação em Portugal desta Cantata “Cristo Rei” que Voz Portucalense ouviu o Cónego António Ferreira dos Santos. Recordamos de novo a descrição que dela faz:

É uma cantata sobre texto de D. Carlos Azevedo, dividida em três partes, em três tempos. Começa pelo paraíso inicial, pelo pecado, mas há sempre um sinal de esperança, as profecias (Derramai ó céus), o Rei triunfante anunciado na profecia de Daniel. Na 2.ª parte surge a anunciação (A Virgem conceberá), que Reino será? Será Reino de Amor que passa pela cruz, pela Paixão. Depois uma grande fuga sobre a qualidade deste Reino, que termina com um hino à cruz. Na terceira parte recorre-se às nossas tradições devocionais, é o Cristo Rei nosso, o do povo. Recorda que Portugal foi ouvido, o voto foi cumprido. Termina com o Ámen suave e meditativo”.

Surpreendeu-nos a obra, na sua grandeza e eloquência, na interpretação musical do texto e na multiplicidade e interação dos seus elementos constitutivos.

Sendo uma “Cantata”, a sua construção procura interpretar a força da palavra. Este é o trabalho dos solistas e do coro, em torno das mensagens propostas: o paraíso, o pecado, a promessa de redenção, a novidade do reino e a sua presença na condição portuguesa. Mas o que mais nos chamou a atenção foi a notável e original orquestração, particularmente expressiva, com recurso às múltiplas vozes da orquestra. Evidenciam-se os sopros e os metais (oboé, fagote, trompete, tuba e percussão), ao gosto do autor, e a presença do piano. Mas os comentários frásicos orquestrais às melodias expressas pelo canto conduzem a uma leitura de valorização do conteúdo temático do texto. Encontram-se comentários de rara beleza e desenvolvimentos frásicos de invulgar originalidade, que nesta versão da Gulbenkian evidenciaram a sua notável construção e sonoridade. A terceira parte da obra, que recorre a cânticos da nossa tradição coral religiosa (“Protege, ó Cristo o nosso Portugal”,  “Coração Santo”, “A treze de maio”), para além da sua harmonização vocal, comenta o texto com original fraseado orquestral  que lhe dá uma projeção do sentido, no espaço e no tempo e transfigura as próprias melodias popularizadas.

Saudemos a prestação dos coros e dos solistas, figuras de prestígio no nosso meio musical. Saudemos a interpretação da orquestra, os solos de alguns instrumentos, como o oboé e a trompete, o diálogo dinâmico dos sopros e violinos. Saudemos a direção entusiasta do maestro.

O hino final (“Um reino eterno e universal”), após a apoteose orquestral e vocal de louvor a Cristo Rei, em que se perfila uma fuga instrumental e um diálogo trompete/orquestra, e um coro vibrante,  quis o autor que fosse uma meditação de interioridade, de contemplação e íntimo louvor (“de reverência e de êxtase”), concluindo a obra em sentido mais meditativo que festivo, dando a entender que a presença de Cristo na nossa sociedade deve estar no acolhimento e no silêncio do coração. 

Em diálogo, o autor considerava  a obra como um projeto pessoal especialmente cuidado, expressão de uma dimensão interior da sua criação artística musical. Testemunhou-nos que esta associação ao Requiem à memória do Infante (atravessando outras obras suas, como a Paixão segundo São João e o último projeto dos cantos marianos, que quiseram lembrar o centenário de Fátima, dizemos nós) faz que se afirmem, na construção e na intencionalidade, como pontos cimeiros da sua criação musical: O Requiem, a cantata Cristo Rei e a Paixão de São João.

Esta apresentação constituiu por certo uma merecida consagração. Pena foi que os autores (da letra e da música) não tivessem podido estar presentes.

No final, o capelão do santuário de Almada, em mensagem dita, manifestou o agradecimento ao esforço e o sentido de participação dos coros e seus maestros presentes, do maestro e dos membros da orquestra, e dos solistas, na realização desta “extraordinária cantata”, bem como à presença da Presidente da Fundação, Isabel Mota, e do Secretário de Estado da Educação João Costa. O Bispo de Setúbal, D. José Ornelas, acentuou o significado desta obra e desta realização neste nobre espaço de fruição estética e cultural, no sentido de reconhecimento e louvor de toda a comemoração dos 60 anos do monumento a Cristo Rei.


A obra foi gravada em áudio e vídeo. Conforme nos testemunhou o responsável da Agência Ecclesia, Paulo Rocha, a obra será objeto de apresentação em programa especial na TVI e também no “70×7”, na edição de domingo 10 de novembro de 2019.