O Cinema visto pela Teologia (1): Uma leitura do filme “Joker”

“Joker” * é um fenómeno cinematográfico. Quem o viu não cessa de falar sobre ele e, apesar de ser para adultos, os adolescente e jovens andam empolgados com o mesmo. Não há dúvida alguma de que a obra, do ponto de vista do impacto estético-sensorial, é dotada de uma capacidade de interpelação fora do comum, e o desempenho dos atores é, em geral, tudo menos medíocre. Contudo, o produto final não se resume a isto.

Por Alexandre Freire Duarte

Com efeito, tal obra, vencedora do Festival de Cinema de Veneza em 2019, não é um inócuo produto de divertimento e de lazer. Ela é um, nada ingénuo, veículo de expressão e reconfiguração cultural, associado à celebração de um suposto determinismo na edificação da personalidade de um demente e violento anti-herói. Um anti-herói pelo qual se deseja que o público possua uma simpatia desculpabilizante e condescendente (porventura na linha da crença, postulada pelo psicólogo Ronald Laing, de que a loucura pode ser um progresso libertador das amarras biológicas, psíquicas e sociais). Mesmo quando é possível conjeturar que a auto-glorificação da personagem do Joker através da violência é apresentada como mais um sinal da sua demência, parece que o filme não aponta a possibilidade de, no universo por si delineado, poder haver pessoas deveras bondosas.

Como cristãos, estas perspetivas não são minimamente realistas. Por um lado, desde a ótica teológica cristã, ninguém é meramente um produto herdado e construído fatalmente, mas uma pessoa capaz de, em distintos graus, se decidir positivamente pelo bem verdadeiro. Além do mais, uma infância traumática, o isolamento social e uma patologia mental nunca fizeram necessariamente de alguém um assassino psicopata. Basta recordar as vidas de Tim Guénard, Giovanna Locatelli e John Nash.

Por outro lado, Deus dá a cada um de nós, e por mais densas que sejam as trevas por nós vividas, a possibilidade de existirmos enraizados na esperança, mormente a que revela que somos a própria esperança do Mesmo. Com efeito, esta é estrutura fundamental da realidade criada e sustida por Ele, inclusive quando ferida pelo desamor. Mesmo que, como acontece com o Joker, os gritos por estima, carinho e aceitação não sejam ouvidos por quase nenhum ser humano, todos nós somos estimados, acariciados e aceites incondicionalmente por Deus. E se assim é, todo o cristão deve ser uma visibilidade bondosa e amorosa deste facto; a visibilidade de que a ternura salvífica de Deus está ao alcance do coração de qualquer pessoa.

Nunca direi “não vejais ‘Joker’”. Mas veja-se o mesmo, não se caindo na ilusão de se acreditar que a violência é charmosa, inevitável (e, assim, inculpável) e até aceitável. Não é. Mais: a resposta à mesma não é mais violência (sonhada ou praticada), mas a implementação do amor edificador da justiça.

(* USA, 2019; Dirigido por Todd Philipps, com Joaquin Phoenix e Robert de Niro)