Nos últimos dias houve uma complexa discussão sobre uma criança que nasceu gravemente mal-formada. Este texto é escrito em honra dessa pessoa de quem não sabemos nada e visa trazer para o centro do assunto a ela mesmo e mais alguns aspectos que estiveram completamente fora do debate que tanta tinta tem feito correr.
Por Jorge Teixeira da Cunha
O que se discutiu foi a suposta negligência de um médico. Talvez essa negligência seja real. Até a Ordem dos Médicos parece admitir isso. Mas há algo que arranha os ouvidos nesta questão. Desde logo a admissão tácita pelo médico, pela respectiva Ordem e pela generalidade dos comentários de que a relação do médico com os seus utentes se esgota no âmbito de um contrato de justiça comutativa. Foi pedido um serviço, esse serviço foi pago e houve uma das partes que não cumpriu a sua parte. Portanto, fazia parte do contrato a destruição da pessoa mal-formada. Mas estará tudo correcto neste assunto? Não haverá aqui motivo para dizer que o rei vai nu?
Dando por suposto que os médicos se deixam enredar nos limites de um contrato de prestação de serviços, parece necessário ir mais adiante. Não estão os médicos a deixar-se enredar numa querela de omnipotência? Temos mesmo de admitir que os médicos têm faculdade de contratualizar seres humanos perfeitos? Talvez em breve possamos acusar os sistema de saúde por não nos ter livrado da morte ou de ter permitido que sejamos sujeito à dor e ao sofrimento. Ora isso é completamente absurdo.
No caso deste criança, não houve comentador que não tenha dito que houve um falhanço completo por parte do médico, por parte do sistema de saúde, por parte do Estado. Ora este tipo de mentalidade está a levar-nos por um caminho completamente desprovido de sentido. O sonho de que a tecnologia melhorará a espécie humana e a livrará de todos os defeitos e de todos os sofrimentos é um pesadelo. A tecnologia pode e deve melhorar a nossa vida. Mas não se pode perder de vista que a vida é que se melhora pela tecnologia. Esta está ao serviço da vida e não a vida ao serviço das metas da tecnologia, por muito meritórias que sejam.
Sabemos que introduzir temas metafísicos neste assunto é muito algo quase escandaloso nos nosso dias. Mas temos de dizer que há uma dimensão de mal que não é superável pela tecnologia médica. Existe uma imperfeição radical na nossa existência que apenas a redenção pode superar, mediante a graça divina. Mas isso não está no nosso poder. Nem cabe nos contratos de justiça comutativa de serviços médicos.
Resta-nos dizer uma última palavra em honra do ser humano que nasceu sem rosto e cujo nome nem sequer sabemos. É membro da nossa espécie e temos de viver com ele o drama de uma existência imperfeita, como é a de todos os seres humanos. O que há a fazer do ponto de vista médico é uma avaliação da sua qualidade de vida e decidir se deve ser tratado ou se deve ser acompanhado com cuidados paliativos, à espera do seu mergulho no silêncio da morte que nos espera a todos. E que o seu sofrimento imerecido resulte em perdão desta humanidade que somos tão cheia de grandezas e de misérias.