Editorial: Ainda encontrará fé sobre a terra?

Esta interrogação foi formulado por Jesus Cristo a propósito da necessidade da oração para o equilíbrio da pessoa humana. Esta pergunta pode encontrar uma ressonância em outra formulada a propósito de um encontro sobre a poesia de Sophia de Mello Breyner: “E se Deus nos falta?”, para uma reflexão sobre as inquietações espirituais e formas de relação com Deus na expressão poética.

Por M. Correia Fernandes

Quem olha o nosso mundo ocidental pode sentir-se confrontado com a ausência de Deus. As nossas linguagens são linguagens de ausência. Há quem tenha falado não apenas da ausência da fé, mas mesmo da morte de Deus. Porém, um olhar mais aprofundado pode levar-nos a pensar que toda a ausência é uma presença, e a encontrar quer na filosofia, quer no pensamento, quer na arte, quer mesmo no discurso político e no discurso quotidiano resquícios significativos dessa presença. Com efeito, olhando as inquietações fulcrais da sociedade de hoje, encontramos expressões que nascem do ideal cristão e que são dele presença, mesmo que não explícita: os gestos de humanidade, os esquemas de organização social baseada no equilíbrio, as propostas e realizações concretas de solidariedade, os sinais de esperança, o próprio sentido mais lídimo do respeito pela Natureza: em tudo podemos ver a presença do ideal cristão.

O ideal cristão, a palavra de Jesus, a sua dinâmica salvadora afirmou-se primeiramente nos países do mundo pagão oriental: a Palestina, a Síria, a Anatólia, o Egipto. Ou no mundo politeísta de gregos e romanos, que influenciaram a inicial cultura europeia. Daí, após as invasões dos povos do norte, afirmou-se neles e por eles o espírito cristão, a construção de uma Europa de raízes evangélicas, que depois levou ao mundo.

Mas nem o espírito nascido dos impérios grego ou romano, com um saber misturado com a violência e a escravidão, nem os ideais medievais de um espírito em que o domínio do religioso encobria dimensões de poder e posse, nem o humanismo quinhentista que exaltava o homem como centro, nem o iluminismo em que império da razão se tornava absorvente e cerceador da liberdade criadora, nem os ideais revolucionário do século XIX entre a liberdade e a intolerância, nem as propostas totalitárias do nazismo ou dos comunismos conseguiram destruir o ideal cristão da liberdade, igualdade e fraternidade, ideal nascido e presente nas propostas de Jesus. Esses ideais continuam vivos na sociedade ocidental, mesmo quando não os sentimos explicitamente expressos.

Nos últimos dias duas figuras emergiram entre nós como expressões da presença da mensagem de Cristo: a dos Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes e D. António Barroso. Ambos foram paladinos da Fé e do sentido mais profundamente humano da pessoa e promotores de uma organização social fraterna. Ambos foram perseguidos e ambos reafirmaram o sentido mais humano da fé. Ambos foram exemplo de esforço pelo bem comum e pela presença da palavra de Jesus na sociedade portuguesa.

Ambos procuraram assim dar expressão positiva à dúvida de Jesus: o Filho do Homem encontrará a Fé sobre a terra? Ambos foram testemunhas e promotores dessa presença.

Ambos demonstraram a proposta bíblica: agora temas a fé, a esperança e o amor. A fé que permanece sobre a terra é apenas um caminho para a descoberta do amor. E o amor não acaba nunca. Por isso vamos trabalhando.