Lembrar os 50 anos da morte de José Régio (1901-1969)

Há autores com maior ou mais visível fortuna junto do grande público e na comunicação social. José Régio não é certamente dos mais afortunados nesse domínio, sem que se compreendam as razões da ausência ou do olvido.

Por M. Correia Fernandes

José Régio viveu um pouco mais de dois terços do século XX: nasceu a 17 de setembro de 1901 e veio a falecer em 22 de dezembro de 1969, data de que este ano se completam em breve 50 anos. O seu nome de Batismo José Maria dos Reis Pereira lembra que José Régio era batizado e de marcadas convicções cristãs, mesmo quando questionava muitos aspetos da interpretação e das vivências da Fé, como bem se nota nas suas obras. A designação “Régio” do nome literário com que passou à História da Literatura deriva por certo da inspiração do apelido “Reis”, em latim “Reges”.

A sua formação universitária fez-se na Universidade de Coimbra, e em Filologia Românica, então a designação contraposta com a Clássica e a Germânica.

A primeira atividade docente que convinha àquela formação teve lugar no Liceu de Alexandre Herculano, no Porto, e depois no Liceu de Portalegre, onde se desenvolveu ao longo de 30 anos, cidade que considerou como se fosse feita “para eu morar nela”, como diz da casa onde vivera, no conhecido poema “Toada de Portalegre”.

O ponto alto inicial e marcante da sua obra é a fundação em Coimbra, em 1927, da revista Presença, folha de arte e crítica, juntamente com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, e onde assina o editorial fundador, intitulado “Literatura viva”, em que defende o princípio da criatividade e da originalidade como fundamento da expressão literária. A expressão “folha de arte e crítica” que a revista ostentou desde o primeiro número, dava-lhe um sentido de modéstia e busca da simplicidade imediata, sem sentido de escola literária ou de originalidade institucional. Escreve Régio: “Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística”, pelo que, “A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe”.

A “Presença” publicou-se durante 13 anos e é considerada a definidora do chamado “segundo modernismo” em Portugal e que contou com a colaboração de autores e críticos que mais tarde se afirmaram nas letras nacionais, entre os quais Casais Monteiro, Irene Lisboa e Miguel Torga e o próprio Fernando Pessoa. Nela foram valorizados os nomes dos autores do primeiro modernismo (1915) e outras figuras emergentes. O próprio irmão de José Régio, Júlio dos Reis Pereira, que foi poeta (que assinava como Saul Dias) e pintor (que assinava como Júlio) ali colaborou.A quando da morte de Fernando Pessoa (29 de novembro de 1935), “Presença” escrevia, pela pena de Raul Leal: “Morreu um Génio… Uma missão altíssima lhe está confiada no Além”. A revista lembrava-o como o maior expoente da escrita e expressão literária em Portugal, lamentando que não tenha merecido o relevo que deveria ter tido em vida na imprensa e no pensamento nacional. Palavras que só por si revelam o espírito lúcido, atento e aberto de José Régio. O número 48, de julho de 1936 é consagrado a Fernando Pessoa, “em quem ‘presença’ se orgulha de ter reconhecido sempre uma das mais ricas e originais individualidades da literatura portuguesa”. Tinha também publicado, no n.º 39 de julho de 1933, o poema “Tabacaria”, um dos mais notáveis do heterónimo Álvaro de Campos. Esta avaliação é tanto mais lúcida quanto só a partir dos anos 50 do séc. XX é que Pessoa começou a ser objeto de conhecimento e divulgação, e pelas mãos de outra grande figura: Jorge de Sena, com a publicação das “Páginas de Doutrina Estética” (1946).

José Régio, poeta, dramaturgo, romancista, crítico literário, analista o universo da pessoa humana e a realidade cultural do país, embora longe dos seus centros de atuação, e compaginava a atividade criadora com a de professor. Os seus livros foram surgindo: em primeiro lugar o significativo título de “Poemas de Deus e do Diabo”, revelando o drama humano entre o divino e o mistério do Mal; surge depois uma das usas obras emblemáticas, as “Encruzilhadas de Deus” (1936) em que se cruzam os dramas das aspirações entre o transitório e do Absoluto. A sua veia crítica exerce-se em sectores diversificados da cultura: “Em torno da expressão artística” (1940), ”Ensaios sobre a Arte” (1967), em que a se espalha por muitos órgão de informação.

O domínio do teatro mereceu também a sua atenção, com temas bíblicos e históricos: “Jacob e o anjo”, “Benilde ou a Virgem mãe”, “A salvação do mundo”, “El-Rei D. Sebastião”.

Lembremos ainda, da sua poesia, as obras de mais tarde: “Mas Deus é grande”, “A chaga do lado”, “Cântico suspenso”.

Uma fase digna de registo especial de José Régio é a colaboração com Manoel de Oliveira na elaboração de alguns dos seus filmes. É curioso como Oliveira se entusiasmou pela temática de “Benilde ou a virgem mãe”, um tema de concepção virginal de uma jovem, o que faz criar uma rede de dramas e preconceitos sociais e familiares. Foi considerada uma temática obsoleta, mas a verdade é que hoje em dia se torna um assunto que captou as capas dos jornais. Outro tema foi desenvolvido por Oliveira no filme “O meu caso”, peça em um acto, em que se questiona o relacionamento do autor com e espectador e os dramas e conflitos que daí podem advir. Realizou também um documentário sobre a obra pictórica do irmão de Régio, com o documentário “As pinturas do meu irmão Júlio”.

Digna também de registo é a presença e colaboração entre José Régio, Manoel de Oliveira e o sacerdote e catedrático da Universidade do Porto, João Francisco Marques (1929-2015), que promoveu a divulgação da obra de Régio. Desta convivência e diálogo terá nascido depois (ano 2000) o filme de Oliveira “Palavra e Utopia” sobre a figura do Padre António Vieira.

Pode então afirmar-se que a obra de José Régio tem um alcance que necessita de ser revisitado e aprofundado. Esperemos pois que o programa das comemorações dos 50 anos da sua morte, que se estende de Vila do Conde a Portalegre, com exposições, ciclos de cinema, conferências e reedições de algumas das suas obras, possa contribuir para esse conhecimento.

O que não deve dispensar, ou mesmo deve começar por aí, uma visita à sua Casa Museu, no centro de Vila do Conde, onde, entre muitas lembranças da sua vida e criação, se encontra aquela imagem de madeira “arrancada a um retábulo de capela”, em que vê a sua imagem de Mãe e que termina “Teus filhos somos nós”.