
“P´ra mentira ser segura
e ganhar profundidade
tem de trazer à mistura
um pouquinho de verdade.
António Aleixo
Neste equívoco verão, além da equívoca novela dos motoristas em greve, pudemos ver publicada uma equívoca sondagem sobre a religião dos Portugueses. Jornal de Notícias 4.8.2019.
Por Ernesto Campos
A amostra é de 800 telefonemas, escolhidos aleatoriamente, a que responderam 89% dos contactados, todos eleitores, com mais de 18 anos, portanto. Uma vintena de perguntas abordando temas os mais diversos, do celibato à crença em Deus, do casamento de homossexuais aos milagres de Fátima, do fisco à política, da confissão aos muçulmanos e budistas. Tudo isto estratificado por escalões etários, por homens e mulheres, classes sociais, regionalmente. Um universo complexo e diversificado nos temas e nos números encerrado numa amostra reduzida; descortinam-se duas perspetivas nas perguntas e respostas: o que os católicos pensam da sua Igreja e o que os não católicos, crentes ou descrentes, pensam da Igreja a que não pertencem.
A partir disto concluiu-se, por extrapolação estatística, que 74% dos portugueses são católicos, mas, espantosamente, só 73% acreditam em Deus!!! Outro dado curioso é o grande número de não respondentes; não estiveram virados para este tipo de perguntas telefónicas, sabe-se lá quem é o perguntador.
Das outras religiões, metade são cristãs e a outra metade não se sabe bem o que são; todas não vão além de 4%; será assim?
No século passado uma outra sondagem, com objetivo semelhante, dividia as respostas em categorias diferentes: ateus, indiferentes, católicos (praticantes/não praticantes) cristãos reformados (i. é outras religiões cristãs) e ainda outras, não cristãs, e residuais.
Comparando o que é comparável temos que há 50 anos os católicos seriam mais 10% do que agora mas distinguindo-se a sua especiosidade, os praticantes reduzir-se-iam a 73,6%. Outra nota a referir é que somados os ateus (3,6%) com os indiferentes (8,9%) da sondagem antiga temos um número equivalente aos atuais sem religião (12%). As outras religiões também não aumentaram os seus fiéis; será assim?
Uma das perguntas/respostas que mais perplexidade nos causa é o casamento, “pela Igreja”, de homossexuais: 65% acham que sim, e, destes, muitos farão necessariamente parte dos tais 74% de católicos por mais impensável que isso seja; só se o perguntante pretendia saber se os católicos sabem em que acreditam. E os outros que legitimidade têm para opinar? Fátima é outra fonte de perplexidades. 93% já visitaram o santuário e 87% vão lá em busca de energia espiritual e, em parte significativa (79%) professam outras religiões. E os católicos, que vão lá fazer? Muitos muçulmanos visitam Fátima e Maria, mãe de Jesus para os cristãos, é, para os budistas, “mãe de todos os budas”, segundo a sondagem.
Que vale tudo isto? Por mais escrupulosamente que se analise, uma sondagem como esta deixa-nos desiludidos. A exiguidade da amostra a heterogeneidade das perguntas, as categorias de resposta e a incongruência das mesmas respostas, tudo isto mais nos confunde do que nos deixa esclarecidos. Afigura-se-nos muito longe da realidade empírica.
Um título “Deontologia da Imprensa” bem podia ser aplicar-se como comentário a uma tal sondagem, em modo de sugestão. Lembra-nos a velha boutade das três formas de mentir: a mentira propriamente dita, o perjúrio em tribunal e a estatística.