
Camilo Castelo Branco permanecerá eternamente ligado à Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, da cidade do Porto, visto que repousa no seu Cemitério privativo desde a sua morte.
Por Francisco Ribeiro da Silva
Catedrático jubilado da Un. Do Porto; mesário da Irmandade da Lapa
Importa, no entanto, relevar que, em vida, Camilo foi um amigo da Lapa, muito antes de ele próprio ou o seu grande amigo João António de Freitas Fortuna pensarem na hipótese de vir a ser sepultado no cemitério romântico mais antigo de Portugal.
Qual o fundamento desta afirmação?
Folheando as páginas da «Gazeta Litteraria do Porto» que o escritor fundou em 1868, salta à vista um artigo em que ele se diverte a traçar os pontos principais da história da fundação da Irmandade, como faria um bom historiador, a saber: a chegada ao Porto do missionário paulista Padre Ângelo de Siqueira, o fundador, em 1754, numa época em que a cidade sofria as consequências de um inverno muito chuvoso a que se seguiu uma cheia nas margens do Douro;
o sucesso imediato da sua pregação junto do povo da cidade que se apinhava para o ouvir;
o oferecimento espontâneo das autoridades de um terreno situado na raiz do monte Germalde, entre as estradas que vinham de Braga e de Guimarães, para construção de uma capela dedicada ao culto de Nossa Senhora da Lapa, do qual o missionário era um devoto fervoroso e militante;
o auxílio pronto e abnegado dos militares do quartel vizinho e das gentes de todas as classes sociais para a construção da dita capela em escassíssimo tempo;
a vocação inicial do Oratório, que era a de acolher discretamente os ladrões arrependidos que se podiam confessar a qualquer hora da noite e restituir os haveres furtados, com total garantia de que não seriam descobertos.
É claro que essa simples constatação, por si só, nada prova acerca dos afetos do insigne Escritor. Mas o tom carinhoso que o autor utiliza (ele que sabia ser sarcástico e irónico como ninguém) e a intenção pedagógica com que trata as diversas facetas da História inicial da Irmandade da Lapa, tentando extrair lições para o (seu) tempo presente, indicam que Camilo olhava com ternura para a instituição.
Passados muitos anos, o nome do celebrado romancista foi proposto como irmão da Lapa, tendo sido aprovada a sua admissão na sessão da Mesa Administrativa de 8 de abril de 1890. Quem o propôs? Não sabemos ao certo porque não conseguimos descobrir a ficha de inscrição. Apenas encontramos a Ata da Irmandade em que consta a admissão, com mais 27 candidatos, em lista apresentada pelo Diretor da Irmandade, como era do estilo. Mas a proposta teve a mão do seu grande amigo João António de Freitas Fortuna, o qual adiantou a joia de admissão.
O sepultamento no Cemitério da Irmandade da Lapa conheceu uma tramitação sequencial curiosa e ignorada:
Em 20 de janeiro de 1887 foi apreciada na sessão da Mesa Administrativa uma petição de João António de Freitas Fortuna, na qual requeria que lhe fosse dada posse de um jazigo que seu falecido pai, João António de Freitas Júnior, construíra num terreno adquirido à Irmandade em 6 de novembro de 1856. E que somente fossem lá sepultados ele e sua mulher, Isabel Maria da Conceição Ribeiro da Silva e Freitas, e ainda o seu irmão, o médico Dr. Vicente Urbino de Freitas e sua mulher, Maria das Dores Basto Sampaio Freitas. E que perpetuamente ficassem juntos estes seis cadáveres, incluindo os do pai e da mãe.
Em 15 de julho de 1889, procurando em Lisboa a cura para a cegueira, numa das muitas cartas que, pela mão de Ana Plácido, escreveu a Freitas Fortuna, Camilo diz-lhe textualmente:
«Começo a experimentar uma espécie de affecto posthumo ao meu cadáver. Tão pouco me apreciei na vida, tão pouco cabedal fis da minha saúde, que já agora me quer parecer que este amor ao que nada vale é retribuição devida a esta matéria que me hade sobreviver alguns annos, aviventada pela engrenagem da putrefacção. Deste desejo extraordinario mas não excepcional, resultou dizer-lhe eu, meu querido amigo, quer fallando quer escrevendo, que aspirava fervorosamente ser sepultado no seu jazigo da Lapa. …. vontade que me domina há ano e meio… O meu querido Freitas acceitou com ternura fraternal a offerta do meu cadáver, e d’esta arte, permittindo que eu fizesse parte da sua família extincta, quis continuar alem da vida a tarefa sacratíssima da sua dedicação incomparável.»
Em 2 de Junho de 1890, dia seguinte à morte de Camilo, o filho Nuno requereu ao Governador Civil de Braga autorização para que o cadáver fosse transportado de S. Miguel de Seide para a Igreja da Lapa, no Porto, tendo o mesmo cadáver sido entregue a João António de Freitas Fortuna para ser sepultado no cemitério privativo da Irmandade no jazigo de família desse dedicado amigo, a quem por escrito recomendou «que nenhuma força ou consideração o demova de conservar-lhe as cinzas perpectuamente na sua Capella».
Em 12 de janeiro de 1891, Freitas Fortuna dirige novo requerimento à Mesa Administrativa da Irmandade da Lapa no qual solicita que a mesma Mesa se digne deliberar, «que nunca possa ser retirado da sepultura número um em que jaz no referido jazigo o alludido cadaver seja qual for a força ou consideração que se alleguem…».
A Mesa Administrativa não decidiu imediatamente sobre o teor do requerimento porque quis consultar algum jurista. A resolução final não aparece transcrita nas Atas imediatas. Sabemos, no entanto, que, pelos tempos fora, a vontade de Freitas Fortuna foi integralmente respeitada. Aliás, o Provedor e as Mesas Administrativas ao longo dos anos sempre se sentiram orgulhosas em lembrar, nos seus Relatórios anuais, os nomes de personalidades ilustres sepultadas no seu cemitério privativo, entre as quais avulta obviamente o de Camilo Castelo Branco.
Finalmente em 24 de agosto de 1899 foi lida na Mesa Administrativa uma carta de Freitas Fortuna, que lhe fora entregue pelo seu testamenteiro Francisco de Oliveira Monteiro, pela qual este, já falecido, legava à Irmandade alguns utensílios de escritório e objetos pessoais de Camilo, tais como tinteiros, penas de escrever, chupador de tinta, etc. Para além desses bens foram entregues à Irmandade outros que ela guarda com muito respeito e zelo, entre os quais o revólver de Camilo, em cujo carregador falta uma bala, a que o matou. E também cerca de centena e meia de cartas e manuscritos diversos dirigidas por Ana Plácido e pelo próprio Escritor a Freitas Fortuna, durante os dois ou três anos derradeiros da sua vida.
Essas cartas hão de ser em breve publicadas.