Editorial: Existe um populismo religioso?

Tem-se generalizado, na expressão corrente da linguagem social, a palavra “populismo”, habitualmente utilizada com sentido negativo, quando não pejorativo.

Por M. Correia Fernandes

O conteúdo indefinido do termo serve para o contrapor à ação dos partidos políticos, usando o conceito como responsável pelo afastamento das populações em relação aos projetos partidários. O mínimo que se pode afirmar nesta linha é que os próprios partidos e organizações políticas vivem do populismo dos seus projetos, das suas formas de propaganda e dos seus processos de intervenção.

Para o uso e entendimento correto do termo populismo importa pesquisar as suas origens, não tidas em conta pela multidão dos que utilizam o termo. O populismo começou por ser um movimento ideológico emergente na Rússia, no final do séc. XIX, que afirmava que a revolução devia ser precedida de uma elevação do nível escolar e cultural das populações, particularmente dos operários e camponeses, razão pela qual se organizaram movimentos de intelectuais para promover a cultura popular. P. L. Lavrov (1823-1900) propunha a promoção de uma “solidariedade social” como dinâmica motora da sociedade. Pode dizer-se que este movimento, que no entanto fracassou pela desconfiança da população e por oposição das autoridades, está na base da prática do comunismo inicial, nesta contraposição à ideologia burguesa, já que se apresentava como expressão da vida e dos sentimentos populares.

Esta carga ideológica do termo populismo parece ter-se desvanecido no contexto moderno, sendo o termo lançado como afirmação de uma indefinida “vontade popular”, como fenómeno de contraponto a ideais político partidários já instituídos – socialismo, social democracia, democracia cristã, esquerda revolucionária – definido como manipulação da opinião pública em favor de movimentos sem ideologia nem fundamento ideologicamente elaborado, mas apenas como processo de mobilização popular, carente de coerência de ideais, dele ausentes ou indefinidos, em favor de novos grupos em busca de poder ou de influência social.

Recentemente, particularmente a propósito da eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, surgiu a noção algo estranha de populismo religioso ou cristão, afirmando a influência da religião na movimentação social designada por populista, e assinalando a presença marcante da religião na eleição e na tomada de posse do governo de Bolsonaro.

Recentemente também, o semanário católico “La Vie” levantava o mesmo problema em relação entre conceitos ou projetos religiosos e movimentos de ascensão partidária de certos grupos de influência política e mesmo governativa, explicitando os casos de Donal Trump, Viktor Orbán (na Hungria) e Mateo Salvini (na Itália), bem como o de V. Putin, em relação à Igreja Ortodoxa Russa. São contrapostas as posições e ações dos Papas, desde João XXIII (Pacem in terris), Paulo VI (discurso na UNU), João Paulo II, Bento XVI e Francisco, contrapondo este às posições de Salvini no que respeita ao problema dos migrantes.

Salienta-se como o “populismo” e o “nacionalismo” criam inimigos interiores e esquecem os valores essenciais do espírito cristão (direitos humanos, solidariedade, justiça, paz, liberdade, em suma, a caridade cristã).

O populismo cristão tornar-se-ia assim um contraponto irracional da religiosidade utilizada em favor de projetos pessoais em que a superficialidade epidérmica e os sentimentos propagandísticos levam à assunção do poder com a perda dos grandes ideais. Este populismo moderno é outra coisa em relação à proposta original, que se pretendia como expressão de um sentimento popular de valorização humana e de promoção social do povo.  A inclusão do elemento religioso neste universo contraditório parece tornar-se um processo subtil de desvirtuar o próprio sentido do religioso.

Mundo complexo, o nosso…