Cantata “Cristo Rei”, uma obra grandiosa e emblemática

Foi apresentada em 18 de maio de 2019, na igreja da Senhora da Assunção, em Almada, para celebrar os 60 anos da inauguração do monumento a Cristo Rei, naquela cidade, agora da Diocese de Setúbal, a cantata “Cristo Rei”, com letra de D. Carlos Azevedo e música do Cón. António Ferreira dos Santos, ambos membros da Diocese do Porto.

Por M. Correia Fernandes

A apresentação, a cargo de solistas (soprano, tenor e barítono), uma associação de coros (cerca de 340 vozes) e orquestra foi uma iniciativa nesta data da Diocese de Setúbal, integrada naquela comemoração. O concerto repetiu-se em 17 de junho, em Fátima, no colégio de São Miguel, perante os Bispos portugueses, que nesse dia iniciavam a sua Assembleia. A obra, que havia sido composta para celebrar os 50 anos do monumento a Cristo Rei, já tinha estado programada para ser apresentada em 2010.

O concerto então previsto acabou por não se realizar nessa data, e a obra permaneceu inédita. Saúde-se a decisão da diocese de Setúbal e a disponibilidade dos atuais participantes pela decisão e pelo esforço de todos para a sua efetivação na celebração pela diocese dos 60 anos do monumento, ocorrida em 18 de maio deste ano. Na altura, em 2010, Voz Portucalense manteve um contacto com o Cónego António Ferreira dos Santos, no contexto da apresentação em Portugal do seu “Requiem à memória do Infante D. Henrique”, pela Orquestra Sinfónica de Frankfurt-Wiesbaden, com o coro Schiersteiner Kantorei e a direcção de Martin Lutz (n. 1950).

A primeira audição mundial desta obra teve lugar no Mosteiro da Batalha em 1995, no encerramento das Celebrações Nacionais Henriquinas, no 6.º centenário do nascimento do Infante D. Henrique, pela Orquestra Nacional do Porto e pelo Coro da Sé Catedral do Porto, sob a direção do autor, sendo solistas Sílvia Correia Mateus, soprano, e António Salgado, barítono.

No outono de 2009 o mesmo Requiem foi apresentado na Alemanha, cantado em português por cantores locais, como grande momento de encerramento do Festival de Música de Wiesbaden, capital do estado de Hessen, pela orquestra, coro e solistas alemães, dirigidos por Martin Lutz. A obra voltou a ser apresentada em Fátima, em 2010, contando com a presença do autor e do Bispo António Marto. Na mesma altura foi também apresentada no Porto (igreja da Lapa), na igreja do Candal em Gaia, e em Famalicão. Segundo testemunho do autor, a apresentação da obra na Alemanha foi iniciativa do Festival de Wiesbaden e mereceu um acolhimento caloroso de uma plateia com uma forte cultura e tradição musical.

Foi nesse contexto de preparação para a apresentação em Portugal desta Cantata “Cristo Rei” que Voz Portucalense ouviu o Cónego António Ferreira dos Santos, com as indicações que agora transcrevemos, à distância de 19 anos. VP – Falemos um pouco sobre a composição para os 50 anos do monumento a Cristo Rei. AFS – É uma cantata sobre texto de D. Carlos Azevedo, dividida em três partes, em três tempos. Começa pelo paraíso inicial, pelo pecado, mas há sempre um sinal de esperança, as profecias (Derramai ó céus), o Rei
triunfante anunciado na profecia de Daniel.

Na 2.ª parte surge a anunciação (A Virgem conceberá), que Reino será? Será Reino de Amor que passa pela cruz, pela Paixão. Depois uma grande fuga sobre a qualidade deste Reino, que termina com um hino à cruz. Na terceira parte recorre-se às nossas tradições devocionais, é o Cristo Rei nosso, o do povo. Recorda que Portugal foi ouvido, o voto foi cumprido. Termina com o Ámen suave e meditativo”. Foi a este conjunto que tivemos oportunidade de assistir, em 17 de junho passado, no Colégio de S. Miguel em Fátima, cantada por 11 coros, com as orquestra Sinfonietta de Lisboa, sob a direção do maestro Vasco Pierce de Azevedo, e os rolistas Carla Simões (soprano),Pedro Rodrigues e Marco Alves dos Santos (tenores) e Armando Possante (barítono). Surpreendeu-nos a obra, na sua grandeza e eloquência, na interpretação musical do texto e na multiplicidade dos seus elementos constitutivos. Sendo uma “Cantata”, a sua construção procura interpretar a força da palavra. Este é o trabalho dos solistas e do coro, em torno das mensagens propostas: o paraíso, o pecado, a promessa de redenção, a novidade do reino e a sua presença na condição portuguesa.

Mas o que mais nos chamou a atenção foi a notável e original orquestração, particularmente expressiva, cuidadosamente elaborada e com recurso às múltiplas vozes da orquestra. Evidenciam-se os sopros e os metais (oboé, fagote, trompete), ao gosto do autor, e a presença do piano. Mas os comentários frásicos orquestrais às melodias expressas pelo canto conduzem a uma leitura de valorização do conteúdo temático do texto. Encontram-se comentários de rara beleza e desenvolvimentos frásicos de invulgar originalidade. A terceira parte da obra, que recorre a cânticos da nossa tradição coral religiosa (“Protege, ó Cristo o nosso Portugal”, “A treze de maio”), para além da sua harmonização vocal, comenta o texto com fraseado orquestral que lhe dá uma projeção no sentido, no espaço e no tempo. O hino final, após a apoteose de louvor a Cristo Rei, quis o autor que fosse uma meditação de interioridade, de contemplação e íntimo louvor.

Conclui assim a obra em sentido mais meditativo que festivo, dando a entender que a presença de Cristo na nossa sociedade deve estar no acolhimento e no silêncio do coração. Em diálogo, o autor considera a obra como um projeto pessoal especialmente cuidado, expressão de uma dimensão interior da sua criação artística musical. Testemunhou-nos que esta associação ao Requiem à memória do Infante (atravessando outras obras suas, como a Paixão segundo São João e o último projeto dos cantos marianos, que lembram o centenário de Fátima, dizemos nós) faz que se afirmem, na construção e na intencionalidade, como pontos cimeiros da sua criação musical. Pena foi que, na apresentação em Fátima, o local (ginásio de um colégio) não constituísse um Espaço adequado para o evento. Pena foi também que a plateia não fosse tão numerosa como se poderia esperar.

Perante um coro de cerca de três centenas de vozes e uma orquestra de cinquenta intérpretes, a plateia de umas duas centenas e meia resultava diminuta. O capelão do santuário de Almada e o Bispo de Setúbal, em mensagens ditas, evidenciaram o esforço e o sentido de participação dos coros, do maestro, dos membros da orquestra e dos solistas, na realização desta “extraordinária cantata”, no dizer do Bispo D. José Ornelas. Ela constitui de facto um momento empolgante. Pena foi não tivesse empolgado uma plateia mais numerosa, mesmo sendo especialmente selecionada com a presença dos bispos.

Segundo o testemunho do autor da composição musical, anuncia-se também a apresentação da obra na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, prevista para o domingo 3 de novembro de 2019. Aí terá certamente a relevância mediática que merece. E que todos merecemos que venha a ter.