Editorial: Mártires da fé ou vítimas de terrorismo?

O mundo já esqueceu o massacre do dia de Páscoa no Sri Lanka: a tendência dos dias frenéticos de hoje é esquecer os dramas para que não mexam com as consciências. No entanto dos 258 mortos naquele dia da Páscoa cristã foram considerados pelo Bispo local como “mártires da fé”.

Por M. Correia Fernandes

O mundo tem dificuldade em assumir um tal conceito ou uma tal realidade. É a convicção laicista de que a fé não merece já os seus mártires, porque estes engrandecem a fé e certamente ainda estará em vigor o dito atribuído a Tertuliano de Cartago (c. 150-220), segundo o qual o sangue dos mártires é semente de cristãos. Importa pois cercear a semente para que não surjam os frutos. Como nos tempos primitivos, em Sri Lanka os cristãos são muito minoritários. No entanto, ou por isso mesmo, o seu dinamismo assemelhasse ao dos primeiros discípulos que anunciavam em pequenos grupos a mensagem cristã, que permanecia e ganhava raízes, em sociedades não apenas laicas, mas claramente hostis. A primeira pregação e perseguição – ali foi açoitado – de Paulo em Filipos, na Macedónia, é disso um exemplo eloquente. Nos dias de hoje, a sociedade cultiva o laicismo propalado e a hostilidade surda ao acontecimento religioso. Os acontecimentos religiosos são referenciados, mas mesmo que multitudinários, aparecem sempre como realidades marginais.

Apenas atingem primeira páginas quando soa a escândalo, verdadeiro u suposto. Esta é a técnica da informação de hoje, que esconde ou atinge para não se sentir atingida. Falar de mártires cristãos, ou de cristãos mártires, é por isso uma linguagem a omitir na sociedade atual. Os cristãos sabem que modernamente a perseguição assume outros contornos, o mais óbvio dos quais é o esquecimento, a obnubilação, segundo o postulado mediático que afi rma que o que não é divulgado, noticiado, exaltado não existe. Assim pelo silêncio induzido se procura induzir o esquecimento e a negação. Este é por isso um novo apelo para os cristãos de hoje, sobretudo nos países do médio oriente e da África central, mas aos de todo o mundo: a consciencialização de que a identidade cristã, a força salvadora do Evangelho e das suas dinâmicas atuais para a humanidade (para o mundo – no sentido evangélico do termo – que não tem consciência disso ou prefere ignorá-lo) são exigência da sua fé, que deve ser assumida de forma prudente, evitando toda a ameaça de perseguição mas enfrentando os seus riscos.

Quando ardem catedrais, qualquer sociedade laica se sente atacada na sua história e na sua identidade. E ainda bem que assim é: afinal a sociedade europeia não é tão laica como os laicos querem fazer supor. Quando por gestos terroristas irracionais ardem ou se queimam comunidades, cristãs ou muçulmanas, ou essencialmente humanas, é como se as suas catedrais, as suas criações estéticas e de fé, a sua memória, as suas projeções para o futuro, os seus projetos de uma humanidade marcada pela busca dos tempos novos da inteira salvação humana e cósmica sejam abalados. Mas nunca destruídas. Porque sempre fundadas na esperança.