Foi na catedral do Porto que a família de Agustina Bessa-Luís acolheu a celebração das exéquias fúnebres da escritora. O facto está cheio de sentidos… O esquife, colocado no transepto, manifestava na sua simplicidade simbólica como de sibila, ou como de oráculo de futuro, as flores memoriais.
Ali ela, Agustina, acolheu, para além da família e das personagens e personalidades que lhe prestavam a homenagem da admiração silenciosa, os responsáveis da sociedade portuguesa, em sinal de veneração e reconhecimento pela obra, marcada por aquela subtil grandeza, de que muitos ouviram falar mas de que poucos ainda descobriram plenamente o alcance. Mas o estar presente é já uma homenagem para o futuro.
Na celebração, presidida pelo Bispo do Porto, marcou presença o Presidenta República, Marcelo Rebelo de Sousa, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, o Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, o Reitor da Universidade do Porto, António de Sousa Pereira, o Diretor Regional de Cultura do Norte, António Ponte, para além de muitas personalidades ligadas à cultura portuense e nacional (Universidade, serviços culturais, editores e amigos).
O Coro da Sé do Porto, sob a direção de Tiago Ferreira, entoou o “Requiem” em canto gregoriano e conferiu em polifonia (“Sicut cervus… assim minha alma suspira) o sentido litúrgico dos textos celebrativos, incluindo o da encomendação final (“Recebei a sua alma…”).
Cá fora, à saída do esquife da catedral e à sua entrada no carro fúnebre, as pessoas aplaudiram: uma estranha forma de presença que não sabe exprimir-se doutro modo ou não tem meios para isso. Agustina, que raramente foi aplaudida, teria certamente um aforismo para esse gesto: “Os mortos exigem-nos sempre demasiado”, ou “todas as grandes obras são transfiguradoras do silêncio”.
Uma (ou várias) revelações
Entre os sacerdotes presentes estava o pároco de Travanca, Amarante, terra titular de uma igreja gótica (que vai desde vestígios do séc. XII ao séc. XVII), de belos portais, parte que foi de um mosteiro em seu tempo lugar de encontro e peregrinação, o Padre Germano Ferreira Leça. Poucos se aperceberam, mas ele fez-se acompanhar do livro de registos paroquiais do Batismo. Eis o que diz o livro:
N. 49. Maria Augusta, filha de Artur Teixeira de Bessa, proprietário, e de Dona Laura Jurado Ferreira de Bessa, casados catolicamente na freguesia de Godim, concelho da Régoa, diocese de Lamego, residentes acidentalmente no lugar do Paço desta freguesia do Divino Salvador de Travanca, concelho de Amarante, diocese do Porto, néta paterna de José Teixeira e de Justina de Bessa e materna de Lourenço Guedes Ferreira e de Maria Lourença Agostinha Jurado Franco, nasceu no dito logar do Paço no dia 15 de outubro de mil novecentos e vinte e dois e foi batizada por mim em caso de necessidade no dia vinte de novembro do dito ano. Foram padrinhos António Jurado Ferreira, solteiro, tio materno da baptisada, e Dona Lourença Agustinha Jurado Franco, avó materna da batizada, que vão assignar comigo, digo, Dona Agostinha Jurado Franco, da dita de Godim.
António Jurado Ferreira
Agustinha Jurado Franco
O Paroco Cosme de Castro Neves
À margem deste assento se regista: “Casou em Cedofeita – Porto – a 25 Julho de 1945 com Alberto de Oliveira Luiz. P. Miguel.
Daqui se podem retirar várias ilações que contradizem dados geralmente aceites:
– que Agustina não se chamou inicialmente assim, mas Maria Augusta;
– que não nasceu em Vila Meã, mas no lugar do Paço, da freguesia de Travanca;
– que o nome Lourença que usou na Sibila lhe foi inspirado pelo de sua avó materna Maria Lourença Agostinha;
– que foi batizada “em caso de necessidade”, isto é, em perigo de vida (que providencialmente superou)
– que a sua família era da Régua (razão pela qual ali foi sepultada).
Há mais dados revelados na celebração, nas palavras do Bispo do Porto, que lhe foram transmitidas pelo pároco de Travanca, que eu mesmo lhe ouvi: Que era habitual ela ir aos domingos à missa à histórica igreja de Travanca; que se inseria no meio dos demais fiéis e que sempre passava junto da pia batismal onde fora batizada e que ali sempre se benzia.
D. Manuel Linda referiu outro dado, lembrado por Mons. José Soares Jorge, anterior pároco do Santíssimo Sacramento, no Porto, à qual pertencia pela sua residência na rua do Gólgota, e ali presente, com o atual pároco, Cónego Joaquim Santos, em sinal de reconhecimento e gratidão: que sempre ajudava e apoiava as iniciativas daquela paróquia.
Como referiu D. Manuel Linda, os escritos de Agustina não eram escritos apologéticos. Mas eram dotados de uma tal humanidade que reconhecia e ajudava a superar os defeitos e limitações da natureza humana. Por isso agradeceu o Bispo a Agustina a “extraordinária lição de teologia que a tua vida acabou por nos dar”.
Recordemos um dos seus mágicos aforismos, que guardo com a dedicatória da autora: “Amemos o que nos sobrevive. Esse é o mais penoso dos mandamentos”.
Uma memória final
A humanidade de Agustina, como a de qualquer mortal, está na disponibilidade. Em 1989, no quadro de uma formação de professores (no tempo em que as escolas se abriam à sabedoria e à cultura, em vez de serem espaços de exercícios burocráticos), Agustina, convidada, visitou na simplicidade da sua escrita, professores e alunos que estudavam, aprendiam e ensinavam os seus livros. Lembro-me do estudo da sua narrativa infanto-juvenil, “Dentes de rato” a que os alunos aderiam naturalmente. Perguntaram-lhe sobre ela mesma, como era. A resposta foi: sou uma mulher simples, mãe de família (muitos nem sabem que eu tenho uma filha), escrevo para transmitir aos leitores o sentido da vida, os bens e os males, os vícios e as virtudes da humanidade. Procuro conduzir o leitor à reflexão e à descoberta…
É nesta capacidade de olhar para além do imediato, nesta superação da evidência, que se encontra a sua grandeza. (C.F.)