Editorial: Uma parusia do quotidiano

Vista desde um olhar crente, a obra de Agustina Bessa-Luís (1922-2019), que acaba de deixar o mundo dos vivos, é uma parusia do divino, por entre as intrigas do quotidiano.

Por Jorge Teixeira da Cunha

Quem primeiro viu este aspecto foi o insuspeito Óscar Lopes que, a propósito de “A Muralha” ou de “A Sibila”, considera que “poucos livros há que me deem tão intensamente o bom sagrado”, ou seja, o divino em perspectiva cristã. Mas esta afirmação anda envolvida numa profunda ironia. De facto, se exceptuarmos a figura de S. António, em vão se buscará uma personagem que seja incarnação positiva do divino ou do santo, ou de um humanismo sem mácula, ou de uma sociedade justa.

A experiência comum das suas personagens é expressão de uma existência quase sempre inautêntica. Assim, a experiência religiosa fica sufocada debaixo da ganga do quotidiano. Como pode ser superado um tal estado de perdição? No universo narrativo de Agustina, existem personagens que são a parusia do valor autêntico do ser humano e da presença misteriosa de Deus. Desde uma exterioridade inacessível, irrompe através delas o estranho e o transcendente no quotidiano.  Esta chegada vertical do misterioso interrompe a inautenticidade da intriga. É o caso de ”O Sermão do Fogo”, em que aparece alguém inesperado que “chega um dia à estalagem, senta-se com o guarda-chuva entre os joelhos, tem um ar de quem não fica muito tempo e de trazer apenas um recado de longe, de longe (…). Todos se entreolham e perguntam: – Quem é este? (…) Que Deus é o dele?” (p. 80). Por agora, no tempo cronológico e no tempo narrativo, prevalece a imperfeição, a fealdade, a mentira como suporte possível para habitar o real. Mas a parusia do absoluto não anda longe. Num texto de “Contos Impopulares”, chamado significativamente “Caminho de Emaús”, há um personagem que aparece de surpresa e desaparece do mesmo modo como sinal desta parusia que inesperadamente invade o quotidiano e o marca pela sua pergunta e desperta a inquietação.

Sobre Deus, diz Durbalina, de “Prazer e Glória”: “Não acredito em Ti, o que se chama acreditar; mas também não passo sem a tua ausência, chamemos-lhe assim. A tua ausência é tão forte como se fosse uma presença” (p. 128). Agustina é uma escritora do mal, como ela própria reconhece. Mas é sobretudo alguém para quem o mundo é o mal, um mal de origem que sustenta todo o visível, com as suas instituições, normas e definições, mas que é inseparável do bem. “O bem e o mal não existiam em territórios opostos; anulavam-se e procriavam juntos, emitiam as mesmas promessas e os mesmo valores. Dera-se a intoxicação da verdade” (p. 26).

Deus mora numa partida, numa ausência, numa solidão. Há personagens que existem desde esse lugar de imanência e de transcendência simultânea e inseparável. Vejamos este belo passo de “Embaixada a Calígula”: “Todos os navios parecem partir de Génova na tarde de domingo, e mover-se nas águas que batujam lentamente contra o cais. É preciso ter as mãos vazias para lhes dizer adeus” (p. 292).  E logo a seguir: “Bebo (…) pelos que inventam o outro lado do horizonte” (p. 305). Como diz Michel De Certeau, no nosso tempo, o lugar de Deus é o lugar do desaparecimento ascensional de Cristo. Uma província longínqua, um povo que o seu nome ignora são o lugar de revelação. Um lugar inóspito do coração humano, um tempo saturado, são o modo de chegada do divino.

A mensagem de Agustina é uma advertência a um certo cristianismo que anuncia, de forma um pouco leviana, a proximidade de Deus: “Deus humanizou-se demasiado e o ser humano quer um Deus à distância, porque a perfeição tem de estar na distância”. Por isso, “a tua ausência é tão forte como se fosse uma presença (…) Inventamos a fé para nos protegermos do vazio que é, no fundo, um elo mais forte que nos liga ao divino” (O Prazer e a Glória, 127). Ela descreve sem descanso a irrupção dessa exterioridade que impugna o mundo do mal da ideologia, da injustiça, da falsidade. Essa irrupção que interrompe é o lugar possível da teologia de hoje, pois Deus parece que sempre se fez ouvir vindo de fora e irrompendo intempestivamente nos ouvidos de uma cultura auto-referencial, como afirma repetidamente o Papa Francisco. A criatividade e a escuta são consumidas pela especulação, tanto económica como dos “idola fori”, “idola tribus” e dos “idola theatri” de que falava F. Bacon. Por isso, regressar à verdadeira obra literária é sempre romper a surdez, mesmo da surdez de uma teologia ou filosofia escolar. A morte de Agustina é para os crentes uma ocasião de agradecer por ela ter existido e por nos ter interpelado para que a nossa fé seja mais adjacente ao mistério de Deus e ao mistério do mundo.