
1. Nas notícias do mesmo dia, 20 de maio de 2019, sobressaíam duas figuras de mulheres, símbolos diferentes e complementares da nossa vida cultural: Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), por ocasião de um Colóquio internacional realizado na Gulbenkian, em Lisboa, que a recordou, pela palavra e pela memória de muitos (professores, críticos, jornalistas) para quem Sophia é sempre fonte de inspiração.
Por M. Correia Fernandes
O colóquio foi promovido pelo Centro Nacional de Cultura, e foi comissariado pela filha da poeta, Maria Andresen de Sousa Tavares, juntamente com outros colaboradores. Não faltou o Presidente da República, ressaltando a sua dimensão poética e cívica. Foram abordados os multifacetados aspetos da sua escrita, considerada ainda insuficientemente lida, apesar da presença nos manuais escolares. Muitas das suas obras permanecem disponíveis para novas interpretações. A capacidade original de olhar e analisar as pessoas, a situação política, os acontecimentos de cada dia, incluindo os da preparação psicológica e ideológica para a revolução dos cravos e a análise dos acontecimentos e sentidos, que perpassaram na sua prosa e nos seus versos, muitos dos quais se tornaram antológicos – tudo esteve presente no colóquio.
Sophia definia-se como poeta. Um dia comentou um lapso de Sebastião da Gama, que lhe chamou poetisa, tendo ela escrito por seu próprio punho, que o feminino do poeta é poeta e não poetisa (escrito que devia ser lido e observado por muito comentador e jornalista), e que o próprio Sebastião da Gama, como poeta, acolheu reverencialmente.
Sobre Sophia de Mello Breyner temos aqui escrito em vários tons, todos eles nascidos pela admiração da nossa simplicidade. Seja-me permitido lembrar o que aqui escrevi em 21 de novembro de 2018, ao iniciarem-se as comemorações do 100.º aniversário do seu nascimento (6 de novembro de 1919).
Ali evidenciava quatro vertentes da sua escrita poética: a vertente do olhar sobre a natureza e o mar (ela própria escreveu: “a terra, o sol, o vento e o mar são minha biografia e são meu rosto”; a vertente do olhar sobre a sociedade, a denúncia e o espírito fraterno; a vertente do olhar sobre o universo clássico e as suas projeções em todo o humano; a vertente de uma dimensão nova do pensamento, do sentimento e do ser, incluindo a visão da criação poética e a força criadora da palavra. Vale a pena recordá-las agora.
2. A outra figura de mulher recordada nesse mesmo dia foi Maria João Pires (n. 1944), pianista e agente cultural, que da sua arte quis tirar um projeto de formação musical e artística que edificou em Belgais, localidade de Escalos, nas proximidades de Castelo Branco, designado Centro para o Estudo das Artes. Foi por essa ação que a Ministra da Cultura procedeu à atribuição à pianista da Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura.
Trata-se certamente de um reconhecimento que dignifica mais quem o atribui do que quem o recebeu, dado o serviço de exceção na ação de divulgação cultural e de prestígio do país por esse mundo além. O talento universal de Maria João Pires, reconhecido pela sua obra interpretativa no domínio da música dos maiores autores, afirma-se e alcança o mundo.
Este é um motivo para que lembremos, para além dos concertos em que era aclamada, a riqueza das suas gravações nas mais prestigiadas etiquetas de discos de obras musicais, como é o caso da Deutsche Grammophon, que editou as suas interpretações.
A sua reconhecida especialização na música de Wolfgang Amadeus Mozart, a solo (sonatas) ou com orquestra (concertos para piano e orquestra) tinha uma dimensão muito mais ampla: a editora apresentou as interpretações completas a solo das obras mais famosas de Johann Sebastian Bach (partitas, suites), Ludwig van Beethoven (sonatas), Johannes Brahms (intermezzos), Frédéric Chopin (mazurkas, valsas, noturnos), Franz Schubert (impromptus) e Robert Schumann (romances arabescos).
Este conjunto de interpretações é fabuloso, não apenas pela quantidade, realizada ao longo de décadas, mas sobretudo pela qualidade, universalmente reconhecida: a correção da leitura, a finura do toque, a expressividade das frases, um especial colorido dos ritmos interpretativos.
Por isso mesmo, nos pareceu curto este reconhecimento, apenas ao nível do Ministério da Cultura. Ficava o sentimento de que deveria ser o Estado português, o país inteiro, a proclamar a grandiosidade impar da sua obra. É importante que ela seja conhecida como outras figuras da nossa história recente, que se endeusam por feitos desportivos passageiros e efémeros. Por isso se deve saudar o anúncio feito pelo Presidente da República da atribuição à pianista e dinamizadora cultural e artística Maria João Pires, em setembro da Grã Cruz da Ordem do Infante, evidenciando não apenas um ministério, mas todo o universo cultural nacional. Com efeito, a Ordem do Infante D. Henrique visa distinguir a prestação de serviços relevantes a Portugal, no país ou no estrangeiro, ou serviços na expansão da cultura portuguesa, da sua História e dos seus valores.
3. A terceira figura, esta de homem, que importa referenciar é a de Chico Buarque de Holanda, a quem foi atribuído, em 25 de maio, o Prémio Camões 2019, considerado o maior Prémio do Universo Cultural português. É curioso que tenha sido atribuído este Prémio a alguém que, além de escritos, é mais conhecido pela sua música e suas canções. Não se pode ignorar a semelhança ou influência da atribuição do Prémio Nobel de Literatura a Bob Dilan (em 2016). Importa recordar que o Prémio Camões fora instituído pelos governos do Brasil e de Portugal em 1988, para distinguir os autores dos países de língua oficial portuguesa que contribuíram para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua portuguesa.
O primeiro galardoado foi Miguel Torga (1907-1995), em 1989, e o último foi o cabo-verdiano Germano de Almeida (2018), tendo já distinguido, além de portugueses e brasileiros, autores de Moçambique (José Craveirinha e Mia Couto), Angola (Pepetela e Luandino Vieira), e Cabo Verde (Arménio Vieira e Germano de Almeida).
A imagem prístina que retenho de Chico Buarque é a de “Morte e Vida Severina”, disco editado em 1966 (era ele um jovem promissor, nascido em 1944), em que dava expressão musical a uma obra teatral apresentada no festival de Avignon pelo Teatro da Universidade Católica de S. Paulo, e que, no dizer do “Le monde”, conduziu às lágrimas uma plateia que não saberia muito português mas que aplaudiu durante mais de dez minutos. Chamava-se “Morte e Vida Severina: auto de natal pernambucano”, de que era autor outro que foi Prémio Camões (o segundo, em 1990) – João Cabral de Melo Neto (1920-1999): a música de Chico Buarque dava asas a um texto entre a simplicidade poética e a profundidade intimista dos dramas e esperanças dos camponeses do nordeste brasileiro.
A poesia e a prosa do autor mantiveram-se sempre ativas bem como os domínios do romance e do teatro, em que sobressaem obras como “Ópera do malandro”, “Budapeste”, “Leite derramado”, “Gota d’água”, para além da quase centena de discos, em que nos vêm à memória composições como “A banda”, “Mulheres de Atenas”, “O que será” e tantos outros que enchem um imaginário do Brasil vertido na tradição portuguesa.
Pode então dizer-se que o Prémio Camões, nascido para pessoas de grave grandeza literária, percorre agora os passos da democratização, calcorreando os caminhos da música que fala ao coração sentimental do povo? Boa pergunta.