Um percurso de domingos, percurso de vida

António Orlando Ramos dos Santos é um sacerdote da diocese do Porto, nascido em dia 13, não de maio, mas de março, de 1942, que atualmente acumula o encargo de duas paróquias (Gueifães e Milheirós), vizinhas da cidade da Maia, e integradoras das antigas e modernas terras da Maia, que se estendiam em séculos idos desde o Porto até ao rio Ave. E qualquer dia ainda lhe irão calhar mais…

Por M. Correia Fernandes

Em tempos idos que o tempo levou, foi também pároco da Foz do Douro, onde pontificou numa das mais belas igrejas da cidade do Porto, herdeira de dinâmicas beneditinas, que vieram desde Celanova e de Santo Tirso, até às paragens marítimas e da entrada dos navios que demandavam o velho burgo portuense.

Esta contextualização serve para apresentar uma publicação, não apenas de um livro, mas logo de três, que levam por título “O Trigo e o joio”, tema de raiz evangélica, mas que já serviu de título também a um romance conhecido de Fernando Namora (1919-1989), de quem o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa anuncia agora um reconhecimento oficial através da condecoração a título póstumo, nos 100 anos do seu nascimento. Das suas obras mais conhecidas sobressaem “Retalhos da vida de um médico” (F. Namora era médico de formação) e “O Trigo e o joio”, publicado em 1954, e que relata as aventuras vividas em contexto alentejano na superação de dramas a na busca de novos sonhos e realizações humanas.

O ambiente recorda outros escritos do chamado neorrealismo português (como Manuel da Fonseca, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes ou Carlos de Oliveira), que procuram descrever a vida dura dos trabalhos como paradigma da ação revolucionária, segundo os princípios marxistas. Porém a obra de F. Namora situa-se no sentido humanista que ultrapassa os propósitos políticos e ideológicos, para se centrar sobretudo no plano estético e humanista, criando “uma pequena heroicidade marcada pelos impasses humanos” (como afirma a abrasileira Ana Carla Ferri, num estudo sobre o autor).

“O Trigo e o joio” de António Orlando situa também o tema noutros parâmetros, que são os da influência evangélica, em que o trigo são os ideais do humano e o joio são as obras do mal. Este trigo e este joio ocupa três volumes de cerca de 350 páginas cada um, o que, convenhamos, não é tarefa desprezável e deve merecer a melhor atenção. Os textos foram reunidos, parece que por inspiração e ação de “Os paroquianos de Gueifães”, a partir de trinta anos de reflexões, publicadas cada domingo na Folha Dominical. Por isso aparecem reunidos em torno dos três ciclos do Ano Litúrgico (A, B, e C), e dos tempos que cada ano comporta (Advento, Quaresma, Páscoa, Páscoa, Pentecostes, Tempo comum). Está também dividido temporalmente, desde o ano 1998/99 até ao ano de 2017/18. O volume vem ilustrado com fotos da presença do pároco em acontecimentos paroquiais festivos (celebrações da catequese, visitas pastorais, presença dos bispos diocesanos).

Porém, reconheça-se que não são as homilias de cada domingo, mas múltiplas e abrangentes reflexões sugeridas certamente pelos textos dominicais, mas em confronto com a vida paroquial, social e cultural, os acontecimentos de cada tempo, os percursos da história humana, as transformações no país e no mundo.
Registemos então, para elucidação do leitor e para estímulo à leitura, alguns desses momentos e reflexões.
“Às vezes, encontro em jornais e revistas formulações de testes para avaliarem isto e aquilo. Nunca vi nenhum para avaliar o tipo de homem que somos… só o querer de Deus indica verdadeiramente o que é ser homem”. (Quaresma de 1998/99)

“A vida faz-se de um grande mistério. A própria vida é um mistério”… Mistério da terra, mistério do coração de cada homem… Hoje como sempre, o problema é o da nossa abertura às obras más”. (Sobre a parábolas da semente, 1999)
“O poder!… Eis o que mais se anseia neste mundo: – o poder… Reparem nas reações dos políticos democratas e tolerantes que, normalmente, não conhecem o que é o poder das mãos limpas, do coração puro, da vida feita Dom, feita serviço” (Nov. de 2004)

Esta semana pus-me a refletir sobre o acontecimento que o futebol constitui para todo o planeta Terra. Trata-se de uma verdadeira religião, universal, cujo culto se presta em enormes e cada vez mais exigentes catedrais… não faltam os profetas, os doutores, os credos, os rituais, as orações… também se exibem estandartes, bandeiras, fazem-se procissões lançam-se foguetes… liturgia que arrasta multidões” (2005)

“Não posso deixar de evocar o que nestes dias se passou em Roma: o novo representante de Cristo, o papa Francisco foi também aclamado por uma enorme multidão… de muitas confissões religiosas e governos das nações… E qual o destino? Não será para reinar, mas para servir, para morrer com vista á Páscoa do mundo e da Igreja”. (Ramos de 2013)

São citações ocasionais. Mas servem para mostrar o estilo deste conjunto de escritos oportunos, que nascem dos tempos, dos dias, do quotidiano. Lá encontramos de facto trigo e o joio: o trigo das palavras e o joio das ações. O trigo dos projetos e o joio dos fracassos.

A telúrica imagem bíblica torna-se o campo dos sentimentos, das vivências e ações de uma sociedade multiforme e contraditória, a metáfora da natureza transformada em projeto humano.
Por aqui se pode ver o amplo espectro que estas reflexões podem sugerir. As felicitações à comunidade paroquial de Gueifães, que soube estar atenta a tantas palavras que ouviu e leu e soube não ignorar, mas alargar.